Por mais que eu adore os sinos da igrejinha, iniciar os dias à meia noite (ou ao meio dia) é uma convenção um tanto arbitrária: não é hora em que o Sol nasce, nem em que ele se põe; logo, sem relógio (ou sem sino da igrejinha?) seria impossível marcar (não, o Sol não está “a pino” ao meio dia). Entretanto, o meio dia e a meia noite cumprem função importante (autoevidente), como “meio” do caminho (seja meio DO dia, seja meio DA noite), de “encruzilhada” (ainda que raramente “exata”, astronomicamente hablando).
Não que qualquer convenção não seja arbitrária, mas se o dia começa com o nascer do Sol fica beeem mais fácil pra todo mundo observar, em comparação a seguir uma abstração secundária (como é o meio do dia e da noite), que existe em função dos… Sim, nascimentos e mortes do Sol, todo dia. Pois bem, e pensando assim faz todo o sentido (oras!) compreender e aceitar (que dói menos)… Que muitas culturas, ao longo da história, iniciavam o seu dia junto com o surgimento do Sol, com a alvorada, etc. Muito que “natural”, não é mesmo?
Quando falamos em mayas, calendários mayas… Especialmente no Cholq’ij, o calendário ritual de 260 dias, e no (Ja’)Ab’, calendário civil-agrário (solar) de 365 dias, estamos falando de SOL a todo tempo, de alguma maneira. Isto vale, seja de maneira mais óbvia - bastar olhar para a conta de 365 dias, duração do movimento de translação da Terra em torno do Sol -, seja de maneira mais “antropológica”, como constatar que os mayas contemporâneos também chamam cada um dos 260 dias do calendário ritual de “face/rosto do Sol/dia”. Oras, se a própria palavra para “dia” é também a palavra para “Sol”, já temos aqui mais do que o suficiente para começar a “brisar” em muita coisa.
Maaaas nem tudo é tão simples quanto gostaríamos. Vivemos num mundo globalizado, regido pelo calendário gregoriano e, sendo assim, nos pautamos bastante (muita gente, mais do que gostaria e do que reconheceria) por este calendário, e pelo sistema de marcação de horas a ele atrelado. Há beleza nisto tudo, em todas as maneiras de ver o tempo, por mais que aqui eu queira atentar para maneiras menos conhecidas. É lindo que dê meia noite, e o galo já cantou… Seu Tranca-Rua que é dono da Gira, Ogum manda a Gira correr… Ogum manda anunciar também um novo dia? Certamente! A Sankofa da Meia Noite…
Voltemos aos mayas, que é o que Sankofa quer, também!
Era uma vez o Tzolk’in (outro nome pro Cholq’ij), a conta “dos (260) dias”, e o (Ja’)Ab’, conta “dos anos” (de ciclos de 365 dias). A origem destes dois calendários é mistério pra Sankofa nenhuma botar defeito! A gente não sabe pois não existia escrita nem outros registros: são calendários que nascem da oralidade, que ajudam a motivar a criação da escrita, mais do que outra coisa (são portanto mães e pais da própria escrita e de vários aspectos do desenvolvimento sóciocultural, técnico, artístico, etc entre os mayas e na Mesoamérica - a região mais abrangente, que além dos mayas tem “astecas”, “olmecas”, “zapotecas”, etc). Mut Itzamna deve tá junto com Sankofa nessa, devem guardar isso aí a sete chaves…
Chega de enrolação: oras, quando inicia o dia no (Ja’)Ab’ e no Cholq’ij, já que são dois calendários obviamente associados ao Sol? Esta é a pergunta que motiva este texto.
Já há alguns anos sei que há certo consenso, atualmente, de que entre os mayas antigos (clássicos) o (Ja’)Ab’ inicia seus dias com o nascer do Sol, e os dias do Cholq’ij com o pôr-do-Sol! Isso mesmo: os dois principais calendários mayas iniciam seus dias, “viram” seus dias em alturas diferentes do dia. Ah, e não vale só para os mayas antigos: conhecemos, hoje, algumas tradições, linhagens familiares mayas, que celebram um novo dia do Cholq’ij a cada escurecer.
Pode parecer difícil de entender e processar, mas não é: se existe mais de um calendário maya, quem disse que todos eles “viram” pr’um novo dia (dentro de suas estruturas próprias) sempre junto? Não existe equivalência exata entre calendário gregoriano e calendários mayas, nunca existiu e nem existirá. Cabe a nós compreender como se dá essa relação.
Enquanto escrevo estas linhas (atardecer de 09/11/2022, no calendário gregoriano), o dia Oxlajuj Tz’i’ ou Oxlajun Ok (“Treze Cachorro”) está morrendo, pois o Sol está se pondo. Consequentemente, está nascendo um novo dia, uma nova trezena: Jun Chuwen ou Jun B’atz’ (“Um Macaco”, “Um Fio”). No (Ja’)Ab’, Oxlajun Ok, na estrutura maya antiga, seria geralmente acompanhado pelo dia 3 Kej (o quarto dia do “mês” Kej no [Ja’]Ab’), porém 13 Ok iniciou ontem à noite, enquanto que 3 Kej só iniciou hoje de manhã.
Beleza?! Pode parecer difícil, mas não é! Uma imagem aqui ajuda a ilustrar:
Na imagem, notem que há sóis (marcando nascer e pôr-do-Sol) e luas (que marcam a meia noite, pra ilustrar em que ponto o dia gregoriano vira, em relação aos principais calendários mayas).
Sendo assim, podemos deduzir que:
09/11/2022 às 18h (hora fictícia do pôr-do-Sol): Cholq’ij “vira” e marca 1 Chuwen; (Ja’)Ab’ marca 3 Kej.
10/11/2022 às 6h (hora fictícia do nascer do Sol): Cholq’ij marca 1 Chuwen; (Ja’)Ab’ “vira” e marca 4 Kej.
10/11/2022 às 18h: Cholq’ij “vira” e marca 2 Eb’; (Ja’)Ab’ marca 4 Kej.
11/11/2022 às 6h: Cholq’ij marca 2 Eb’; (Ja’)Ab’ “vira” e marca 5 Kej.
E assim sucessivamente…
Em resumo, quando o Cholq’ij “vira”, o dia do (Ja’)Ab’ já está maduro, e vice-versa. O dia do Cholq’ij nasce da escuridão, como Sol noturno, e só se mostra aos nossos olhos quando já está mais maduro (após passar pela noite); com o Ja’(Ab’), é o oposto: vemos o Sol nascer, diferente do Cholq’ij (em que ele nasce nas sombras, na escuridão, e da morte do dia anterior).
Gostaria de me alongar mais, e fazer desta escrita mais bonita por agora… Mas logo menos podemos aprofundar sobre tudo!
Por iiissssooo, partir de hoje, no âmbito do Tzolk’in Brasil (@tzolkin.br no instagram), os dias do calendário ritual serão postados sempre no fim da tarde / início da noite, honrando a tradição que tem sido confirmada e (re)confirmada para nós, coletivamente já há algumas trezenas.