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Software Livre à Esquerda? Descolonização dos Computadores?

Numa sociedade globalizada e em processo de digitalização aprofundada há pelo menos 30 anos, penso que “esquerdas” que não lutam para romper com seus próprios grilhões digitais são esquerdas não apenas mais alienadas, como mais facilmente controladas e monitoradas. Quem é mesmo anticapitalista, em especial, não deveria se dar ao luxo de ser tão digitalmente alienad@ quanto qualquer pessoa “normal”, no entanto usa-se como parâmetro a alienação geral para justificar o atraso e a negligência de “esquerdistas”, “progressistas” e outros “istas” quaisquer - incluindo “anarquistas”. O relativismo conformista vence diariamente, enquanto seguem em seus Windows, Facebooks, Instagrams e fazem deles não só órbita como eventualmente condição primária de sua vida e de seus trabalhos. Assim, as próprias esquerdas (incluindo no Brasil) têm, sistematicamente, reforçado e legitimado monopólios e hegemonias mantidos por grandes empresas, como é o caso do “grupo” GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft).

É claro que “apropriação tecnológica” envolve uma série de processos e aprendizagens, mas enquanto boa parte da imprensa (e mais ainda, a imprensa “esquerdista”) trabalha numa associação do Telegram à direita - em que tentam pintar a plataforma como “reduto bolsonarista”, diante da briga conjuntural com Alexandre de Moraes (STF) -, isso pode ser visto como um sinal de que nem mesmo se apropriar mais do Telegram a esquerda brazuca conseguiu (ou melhor, quis), por mais que seja possível listar um punhado de canais da esquerda institucional no Telegram (incluindo o próprio Lula, que hoje tem pouco mais de 50 mil em seu canal, contra iminentes 1,3 milhão de Bolsonaro). Uma apropriação mais tímida por parte das esquerdas quer dizer que o Telegram por si é mais propenso às direitas? Claro que não! Quer dizer, antes, que as esquerdas ainda preferem orbitar as grandes hegemonias do grupo Meta, por exemplo, na preferência pelo zap (com quem o Telegram concorre mais diretamente), ao menos em comparação aos bozonaristas. Mas será que orbitar esse verdadeiro Império digital estadunidense é que é “ser de esquerda”?!

Não que o Telegram seja tão bom assim (ele é apenas parcialmente livre), mas é um exemplo de como, ao limitar seus horizontes de possibilidade, as esquerdas conformadas com suas gaiolas digitais parecem nem mesmo querer dar qualquer passo em direção às liberdades digitais.

Eu, sinceramente, não consigo concordar com os esquerdistas acomodados (no colo da grande burguesia digital), que relativizam o problema como quem diz que “é assim mesmo, é difícil, não é todo mundo que tem acesso a esse conhecimento” - como se fosse bicho de sete cabeças, quando não é. Em meio ao desserviço, essas esquerdas (e até anarquistas) afundam a si mesmas numa dependência digital, com um obscuro centro de órbita comandado pela burguesia internacional, em que não há transparência e segurança digital para nossas vidas e comunicações. Depois o Facebook decide sei-lá-ukê e voltam as esquerdas chorando “censura”… Não percebem que se boicotam quando fazem dessas ferramentas seu centro de órbita?

Se você puder usar LibreOffice para suas tarefas de escritório e GIMP para editar imagens, por exemplo, em lugar de suas alternativas proprietárias, certamente já começou sua estrada no Software Livre (esteja consciente disso ou não), mesmo que ainda use o famigerado Windows. Uma “revolução” pode parecer distante, mas ao menos uma mudança drástica em suas vidas online é extremamente viável para ativistas e pessoas realmente preocupadas com suas liberdades, mesmo quando não é possível prescindir das redes Meta e afins (Telegram eventualmente incluso) para disputar os rumos do país. Inclusive, faz-se necessário (para disputar a opinião pública, por exemplo) saber utilizar e disputar essas redes, mas isto não significa orbitá-las mas sim nos apropriarmos mais conscientemente delas (em lugar de sermos alienados por elas).

É preciso, entretanto, seguir refletindo e avançando, sempre que possível, e em especial no que se refere às nossas comunicações pessoais. O que queremos legitimar em nossas vidas e (re)produzir digitalmente? Por que concentramos nossas comunicações em ferramentas que não são baseadas em Software Livre, e apenas aumentam o poder de uns poucos enquanto esvazia-se nosso próprio poder coletivo e nossas amplas possibilidades de autogerir nossa vida online?

Graças ao Software Livre eu criei este glorioso blog-sítio, mesmo que ele possa parecer mais “maya” que outra coisa. Aqui, eu posso ao menos organizar minhas ideias em um ambiente livre, e publicar conteúdo original de maneira autônoma, que não é postada diretamente nas (e nem depende das) redes sociais hegemônicas, fechadas em si mesmas, que buscam monopolizar (e capitalizar) nossas atenções.

Em lugar do WhatsApp e do Telegram, por exemplo, você pode usar o bom e velho IRC, ou novos protocolos descentralizados e totalmente baseados em Software Livre, como é o caso do XMPP e da Matrix. A verdade é que hoje a guerra entre Rússia e Ucrânia é a maior guerra digital de todos os tempos, mas a esquerda brasileira se autoaliena da compreensão desta dimensão da vida que tem se tornado central para as massas (seja no Brasil, na Rússia, na Índia, na China, na África do Sul e virtualmente em qualquer lugar do mundo), e não é de hoje. Não por acaso, nesta conjuntura, entre Ucrânias, Rússias, Estados Unidos e OTANs, as esquerdas mais parecem baratas tontas hoje, além de divididas; mas certamente estão unidas numa coisa: seus computadores rodam Windows, seus debates orbitam as redes hegemônicas! Até quando a negligência e a capitulação de quem se diz anticapitalista?

Muito as esquerdas se dedicam, hoje, a “descolonizar” o que quer que seja. Sob o amplo guarda-chuva do “descolonial”, há de tudo (desde os mais sinceros e honestos aos mais irracionalistas). Parecem esquecer de seus próprios computadores, muito mais facilmente descolonizáveis do que as pessoas (ainda que ambos dificilmente sejam descolonizados por completo), ao menos no sentido de que é possível livrar-se de boa parte de sua “programação” fechada, proprietária, determinada por grandes “impérios”. Para @s oportunistas de novas “ex-querdas”, porém, mais vale usar o Windows, o Instagram e o Twitter para “cancelar” as pessoas por não atenderem aos seus padrões, enquanto estão imers@s em contradições quando o assunto é suas próprias vidas, a começar por suas dimensões digitais. Se eu fosse “cancelador”, porém, mesmo os críticos aos “canceladores” teriam de ser cancelados, nesse caso… Impressionante como se “relativiza”, num campo mais abrangente de esquerda, para que seus computadores continuem cada vez menos livres.

Obs.: aproveite para conhecer a Fundação Software Livre.

Software Livre, Sociedade Livre

Software Livre à Esquerda? Descolonização dos Computadores?
https://oxlajujqanil.net/posts/softwarelivre-esquerda/
Autor
Oxlajuj Q’anil
Publicado em
25/3/2022