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Sonhos com Mayas no Escuro - para Sylvia e MM

Kajib’ Tz’ikin, Job’ Ajmaq, Waqib’ No’j (Quatro Pássaros, Cinco Ancestrais, Seis Pensamentos)

5 a 7 de Outubro de 2022

“Ando a ver. O caracol sai do arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.”
João Guimarães Rosa

“Quisieron enterrarnos pero no sabían que éramos semillas”
Subcomandante Marcos

Este texto é uma homenagem (em vida) a Sylvia França Schiavo e Marcia Oliveira Moraes (MM), minhas eternas “desorientadoras” da graduação. Marcia me deu uma bolsa (2, por 3 anos!) antes mesmo de Sylvia me aceitar como seu “orientando” para o TCC sobre calendário maya, mas começo esse texto por Sylvia, a quem dediquei inicialmente a escrita que, agora, vem em apêndice a este “ensaio” (ou sabe-se lá que escrita é essa).

Já aposentada, Sylvia foi a última marxista dentro de um departamento já em boa medida morto, necrosado (que, além da “extinção” dos marxistas, não deu devido valor à etnologia indígena): o departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). O que outrora era um espaço muito mais rico intelectualmente, tornou-se nicho de “carreiristas”, que “rezaram a cartilha” de velhos professores pra se tornarem os novos professores. Mas isso é muito “densamente político”! Vai chegar a hora. Se eu amo a Sylvia, é também pois ela é capaz de tornar, seja na sala de aula ou no bar, as análises políticas mais duras em algo leve e divertido. Que sua memória viva pra sempre, com a memória dos dois ancestrais que ela honrou em vida, aos quais ela foi verdadeira devota até seus últimos dias: seu pai e sua mãe.

Nascida num dia histórico, o do fatídico Maracanazo (e lembro-me bem de uma visita ao seu aconchegante apartamento, não muito longe do [simbolicamente] maior estádio de futebol do mundo), o rosto do dia em que Sylvia nasceu (no calendário ritual maya, nas ciências mayas a partir da qual se explicam / se entendem a gestação, a concepção das pessoas) remete de maneira muito forte a tudo aquilo que eu a vi passar, com a perda de seus pais. Algo que, certamente, a marcará até seus últimos ciclos encarnada neste mundo… A presença daqueles “dois ancestrais” (uma das “traduções” pro dia da Sylvia) é que a criaram, formaram, a nutriram diretamente, que deram sentido à sua vida e aos ciclos que mantiveram o sustento de sua vida, desde então. Eu tava com ela no momento que ela mais precisou de mim, acho, ainda que sinta muito a falta dela - e sinta que estou em falta com ela. Dei a mão a ela no falecimento dos seus dois grandes ancestrais - e ainda assim, fiz (tenho feito) pouco, nada por ela (a não ser sentir e pensar, mesmo que à distância), não por termos brigado mas sabe-se lá por quais processos (possivelmente, mais meus). E sei que nada disto é “leitura mística” de nada: é uma síntese até “antropológica”, de quem conhece a Sylvia e os nawales e suas implicações, por vezes muito mais sutis do que as “definições de manual” sobre os dias.

Saudades da Sylvia; amor eterno à MM.

Há quem imagine muito sobre mim. Que eu sou muito bruto, às vezes me falta gentileza (especialmente se estiverem lendo um texto, mais do que me escutando); não deixa de ser, todos temos nossos momentos (e eu não me orgulho de todos os meus, quem se orgulha parece hipócrita). Mas imaginar-me “acadêmico”, fechado e limitado a uma relação pragmática, rasa, esvaziada (ou simplemente “guiada pela ciência ocidental”), isto sim, estaria muito distante da realidade.

Certamente eu melhorei muito, aprendi a lidar melhor com meu “masculino” e meu “feminino” não propriamente com a Sylvia, mas com a MM e todas as meninas do “Perceber Sem Ver” (PSV), que basicamente é um grupo de pesquisa (e mais do que isso, de muito afeto e cura). Uma ilha de amor dentro da academia. MM, com muita razão, preocupa-se em questionar as categorias de “eficiência” e “deficiência”, via de regra relativizáveis, não absolutas, com os “ritos de passagem” dolorosos implicados na perda de visão (seja repentina, seja processual).

MM, lá no início de 2012, abriu uma seleção pra bolsistas… Era pra ser umas 4 bolsas, pra antropologia E cinema, lembro bem. 20 e tantas pessoas se candidataram… Só conseguiram confirmar uma bolsa! E agora? “A pupila dos cegos é seu corpo inteiro!”, argumentei na redação, inspirado pelo título de uma bela tese de doutorado em antropologia. Certamente outros ótimos textos foram lidos pela MM, e pelas demais meninas do grupo, à época. Só posso agradecer a todas elas, por terem me colocado pra dentro não do seu grupo, mas das suas vidas, das nossas relações recíprocas, mais cuidadosas… etc, etc, etc.

Eu sinto saudades da MM, desse grupo. Eu quero estar com as pessoas cegas de novo. Quero trabalhar meu corpo junto com o corpo delas, como fiz tantas vezes. Até pro meu “rebolado” elas - e todos eles, entre meus “alunos”, que chamavam-me “professor” - algo de que não faço lá questão - contribuíram. Mas, mais do que tudo, e hoje vejo muito bem, contribuíram muito pra curar meu “masculino”, meu “feminino”, (re)formar-me, estabelecer novas formas do meu ser no mundo. Eu já amava muito tudo isso, mas foi por esses dias que o aspecto “espiritual” (e não só acadêmico e de afetos mais perceptíveis/superficiais), aquelas meninas todas (capitaneadas por MM) me ajudaram muito, me curaram. Muita coisa mudou e melhorou em mim, graças a ela.

E digo isso como quem, hoje, se sente abraçado por mulheres fortes, “curado por mulheres”. E também, assim, dedico esta escrita hoje também a pessoas como Maynna e Ana Julia, que representam uma revolução na minha vida, e uma chance de retornar também às memórias com MM, as meninas, os cegos. Tudo foi muito forte com a MM, como é agora (de um jeito que eu consigo sentir muito mais, de jeitos que eu não sabia sentir), e eu só posso agradecer por tudo que as pessoas fizeram e farão por mim e comigo, em nossas relações.

Meus sonhos… São muitos. O que motivou toda esta escrita é sonho que se repetiu, faz tempo; parei de contar quantas vezes. Talvez se repita novamente. Sabe-se lá. Tudo germina autêntico é depois, bem depois. Mas como alguém de muitos sonhos, daqueles que se sonha acordado, me tocou ser diferente; me tocou outro corpo, talvez. Me tocou não enxergar. Caverna escura ou corpo cego? Sabe-se lá: por enquanto seguem mistérios das criadoras, das formadoras; dos criadores, dos formadores. Mas os dias estão nos dizendo mais, muito mais, por estes dias. É muita coisa que não dá pra explicar, é a petição de mais certeza de que voltaremos a escrever enquanto estivermos vivos. Ou, ainda melhor: que voltaremos a narrar, mesmo oralmente! Oras, a palavra nasce do corpo, da oralidade; não do papel.

Eu sempre estive muito, muito além da universidade. Me relaciono com os dias, e muito até, ainda que eu não tenha buscado uma iniciação mais formal (ah, a poesia), nem tenha feito qualquer chamado ou pedido mais disciplinado, mais atento (minha falta); uma relação de mais de 20 anos, mesmo que essa relação fosse mudando, amadurecendo, aprofundando, como há de ser. Logo, foram os calendários mayas que me conduziram à universidade (ou, para não nos alienarmos, foram os dias, os rostos dos dias). E foi pela Sylvia, e para a Sylvia, que eu escrevi talvez o meu texto mais bonito que escrevi durante todo o período da minha graduação (em 2011, em Ciências Sociais, e entre 2012 e o fim de 2014 em antropologia). Foi a Sylvia, minha “desorientadora”, que me deu segurança para fazer uma monografia sobre calendários mayas, escrita por minha conta e que ela aprovou com aval de Nikolai Grube, um grande especialista (meu coorientador da graduação), mas que me tratou muito diferente da Sylvia, desde seu eurocentrismo, ainda que isso não tenha a ver com mayas e seu trabalho relevante.

Mas já ali (com a gente, com Guimarães Rosa) há algo fundamental, né Sylvia? A oralidade. Eu escrevo de um jeito que pode parecer “muito oral”, às vezes. E que bonito são as escritas menos duras… Capazes de sambar um encontro de sambistas, como os que eu ouço pra escrever, volta e meia (e são muitos os ancestrais cá, também) - e que falam sobre vidas, relações, de um jeito que o samba não nos deixa cair, mesmo que alguma letra possa ser mais triste do que outra, pros ouvintes.

Weno, se fosse pelos mayanistas eurocêntricos, eu nem escreveria ou publicaria mais nada (nem teria começado a escrever). O faço por amor e não por quem não me tem amor. Tampouco o faço, depois de tanto tempo, por mero apEGO; minha práxis é distinta, e mesmo que seja um “antropólogo”… A força dos ancestrais não é uma mera mistificação. Relacionar-se com os dias desde as perspectivas mayas é algo muito bonito, poético; a eficácia simbólica vai muito além da superfície, da “astrologia”, da “horoscopização”; o sentir pode ir além do que a eficácia simbólica explica… Nome, alma, destino, identidade, são marcados pelos ciclos mayas, por sistemas e ciências mayas que observam muito mais do que poderíamos a olho nú - ainda que a dialética agricultura-astronomia siga firme q forte, e muito viva entre os mayas - que não, nunca “desapareceram”. Os mayas estão todos aqui, seguem muy, muy vivos - e seus calendários também, ainda que seu resgate seja processo muito mais recente, com assuntos à parte.

A academia no meu coração é personificada por MM. Que mulher forte, que espaço potente com as pessoas cegas. Fui “professor” a primeira vez com os cegos, as pessoas de baixa visão, as pessoas que perderam ou estão perdendo a visão, em especial. Experimentação, expressão corporal, acima de tudo acolhimento, coletivo, senso de comunidade, é o que nós trazemos (no PSV), ou melhor, o que nossa relação, entre nós e com as pessoas matriculadas no Instituto Benjamin Constant, antigo Instituto dos Meninos Cegos, na Urca, Rio de Janeiro. “A Urca é uma ilha dos cegos”. Pois que eu volte à ilha, pois que desilhemos os cegos e todos os outros, diferentes, discriminados, marginalizados e desmerecidos, seja por qual razão. Pois que deixemos de ser e construir tantas ilhas, construindo cidades que não são ilhas para os outros (como os cegos), em que todos conseguem ir e vir (usando dos tantos avanços tecnológicos e do dinheiro dos bilionários pra isso). O próprio PSV foi uma “ilha de amor” dentro da academia (que tritura muita gente), pra mim. Não deveríamos estar buscando de ilha em ilha “perdida”; tive sorte.

Hoje eu sei que eu fui tão, mas tão “curado” dentro de um grupo como o PSV, em que (entre a equipe de bolsistas) eu era o único antropólogo e único homem, que faltam as palavras; finalmente, faltam palavras para alongar mais a escrita destes episódios (até pois eles me remetem a coisas que vivo agora). Assim como alguém que “consulta” o tempo à sua maneira, os dias passam e olhamos pra trás; e é aí que podemos perceber, entender melhor a dimensão das coisas e encontros que ajudam a nos (re)formar.

Por isso, já depois de ter iniciado esta escrita de agora concluí: é uma escrita, uma publicação de um velho escrito da minha mais alta estima pessoal, para homenagear MM, também, e o PSV de modo geral.

Sylvia me disse as verdades que todos disseram, o senso comum: ficar no Brasil para o doutorado sempre foi o caminho mais dolorido, mas era o meu caminho, mesmo que digam-me teimoso. Serei eternamente grato, Sylvia, minha eterna gratidão!

E meu “eterno cultivo da oralidade”, também por ti, por nós, pelos nossos ancestrais, me faz publicar, depois de tanto tempo, o que escrevi pra reviver, contigo, lembranças, memórias profundas em mim.

Etnocorpos que escutam

Há alguns anos, visitei constantemente um lugar estranho, daqueles que propiciam ao tempo encontros que nos desviam e nos mantêm em movimento. A experiência e o modo de perceber eram novos, outros, absolutamente diferente; era como se eu comungasse de uma alteridade radical à vida reificada. Eu não podia enxergar, pois não havia luz; eu não podia falar, pois a língua era outra; eu podia, contudo, escutar. Foi uma daquelas experiências que nunca se explicam, mas se atrevem a se inscrever, quando apenas escutando pude me situar - se é que pude. Num outro lugar qualquer, eu não seria sequer capaz de discernir a conversa, mas ali tudo que eu ouvia reverberava em mim, evocando entendimentos de relatos maduros acerca daquilo que eu também trazia de longe. Parecia que eu estava diante de um conselho de anciãos, daqueles que não se escreveu em atas mas marcaram corpos. Era um lugar em que o conhecimento não podia se separar do corpo presente, e ainda que aquilo que se escutasse fossem os ecos das palavras nunca ditas, eu partilhava daquele encontro de saberes como se integrasse aquele corpo de vozes no lugar de quem sabia escutar e se atrevia a retornar, encarnado naquele outro corpo.

Quando acordei, já não escutava, e as memórias tornaram-se enigmas da escuridão, ciclo após ciclo.

Obs.: a escrita de hoje (2022) é também dedicada a IxChel e seu(s) coelho-escriba-guardador-de-parafernalhas, à Lua (e todos os rostos do Sol e da Lua), a Oxóssi (que na Lua é Odé), a Exú, Yansã, Oxum… E a todos os caboclos, especialmente os de Nictheroy.

Sonhos com Mayas no Escuro - para Sylvia e MM
https://oxlajujqanil.net/posts/mayasnoescuro/
Autor
Oxlajuj Q’anil
Publicado em
7/10/2022