Algumas vezes pensei escrever… Voltar a escrever, a publicar na internet, essa rede hiperconectada, complexa e altamente contraditória… Mais poesia, certamente, escrevi e não postei nos últimos meses. Faz sentido que seja hoje e assim (e a escrita de 13-Caminhos seja fechada em 1-Morte).
Nestas redes (afinal, a internet é uma metarrede[?], uma rede de redes), quase todas as pessoas são cotidianamente alienadas a um nível brutal. Em novos aprofundamentos da divisão social do trabalho, passamos a depender cada vez mais das redes sociais hegemônicas, sem entender como elas funcionam, ou mesmo sem questionar a dependência que passamos a ter, em relação a uma certa rede específica… A depender do seu modelo de negócios, sua idiossincrasia, um pouco de cada (e além).
Acontece que, não raramente, nos apropriamos cada vez menos (e com menos propriedade) do mundo. Apropriar-se é algo bom (diferente do conceito de apropriação cultural que, dentro da sociedade capitalista, implica no roubo-e-venda do que é cultura e espiritualidade do “outro” / dos “povos tradicionais”, etc). E é algo realmente muito bom (e que nos falta) quando pensamos em tecnologias, ou sobre a internet: mesmo os especialistas em compreender os efeitos sociais e culturais de todas as transformações tecnológicas das últimas décadas acabam, não raramente (me repito), deixando a apropriação tecnológica de lado. Então ótimos antropólogos podem teorizar sobre a internet, mas nunca botaram a mão na massa para produzir internet: ou, como diria Gilberto Gil, “criar meu website, fazer minha homepage”, mas num sentido literal e não terceirizado/alienado, por exemplo. Você pode até ter um website, mas tem pleno controle sobre ele, seu servidor e tudo mais? Ao menos sabe como funciona?
Há uma série de conhecimentos que julgamos muito “especializados” e mesmo “desnecessários” (deixamos os especialistas lá, na deles). Talvez o que não façamos com frequência é o questionamento destes julgamentos. Estabelecemos relações cada vez mais “individualizadas” com o que quer que seja, mas que repetem padrões… Coletivos, mesmo que seja o do próprio individualismo e egocentrismo, que também pode nos tornar cada vez mais alienados de tudo.
Como disse Mauricio Vieira, na minha primeira aula como calouro universitário (UFF, 2011), em Sociologia I, informação há hoje, aos montes, e possivelmente mais completa do que ele seria capaz de nos transmitir em uma aula sobre determinado tema. Certamente algo que gosto de repetir, enquanto “professor”. Mas o que fazemos com toda essa informação - e se queremos acessar, quando queremos, o que buscamos - torna-se, cada vez mais, grande questão. Mas é uma nova-velha questão: não adianta tanta (in)formação sem formação; é a partir de uma formação sólida (não estritamente acadêmica, mas também teórica e prática) para saber filtrar, interpretar e posicionar-se diante de problemas. Ou para conhecer e se inserir realmente em um campo. Como descentralizar (o acesso à informação) com responsabilidade? E talvez, quem sabe, possamos pensar essa responsabilidade em termos de formação e sensibilização, para a compreensão de tanta informação?
O óbvio, lembrado pelo meu antigo professor, vale pra virtualmente tudo, por supuesto, inclusive para conhecimentos tecnológicos e até sobre espiritualidade maya. A internet está aí pra nos ajudar na apropriação dessas coisas e de muuuitas outras.
Bem, devemos olhar para as contradições e perceber que centralizamos tanto nossa presença online pela força do… Dinheiro, de grandes conglomerados que se tornam hegemônicos, que mantêm as redes hegemônicas às custas de nós mesmos e de nossas liberdades. Aceitamos orbitar sempre essas grandes redes e nem mesmo paramos para pensar sobre isso. O tal “mercado” parece ter vencido, e nós escolhemos nos alienar, muitas vezes.
Estas redes hegemônicas, por sua vez, circulam qualquer informação, e não raramente o que mais circula é má informação, desinformação, ao mesmo tempo em que são fomentadas bolhas e cultos à imagem e à individualidade, em vários níveis. Ou, ainda, informação cuja circulação é mais afeita não só aos padrões dessas redes, mas aos padrões da própria sociedade. Incluímos aqui, a própria mentalidade “multiculturalista”, porém neoliberal, que alicerça e retroalimenta redes new age, que aprofundam e sofisticam as formas de apropriação cultural e de cooptação de neófitos, inocentes e emocionados para todo o tipo de cerimônia (cujos custos, via de regra, são condizentes com uma classe média que busca converter seu capital econômico em capital cultural).
O antropólogo (vide “História Social da Imaginação Moral”) passa impune por quase todos os contextos em que fala sobre suas especialidades de pesquisa, exatamente pela ausência de especialistas sobre determinado tema acaba desfrutando de uma autoridade dada e naturalizada - pode falar e fazer o que quiser, e não será questionado. Não é diferente com as redes new age, especialmente quando trazem especialistas rituais (ou pelo menos assim promovidos) de culturas estranhas a nós, brasileiros… Como é o caso das culturas mayas.
Com o avanço da “moda do cacau”, mas também dos “calendários mayas”, nas redes hegemônicas, em especial instagrâmicas, amplos campos tem sido abertos. Estes campos não são “o campo do cacau”, ou “o campo da espiritualidade maya”, mas antes simulacros alienantes: não conhecemos o cacau ou o seu campo, e muito menos a espiritualidade maya e seu campo através das redes.
A circulação de informação de maneira inadvertida, e sem conhecer os campos de fato (e não apenas os simulacros virtuais), ajuda a acelerar diversos processos de apropriação cultural, e também acelera processos de “iniciação” de brasileiros junto a “autoridades ancestrais” questionáveis. Não podemos abrir mão de analisar as redes, conexões e lucros envolvidos em nenhum evento de cunho espiritual e cultural, sob o risco de estarmos financiando e retroalimentando e nem mesmo as pessoas que circulam nas redes hegemônicas.
Com o cacau, amplamente difundido enquanto “herança/medicina ancestral maya”, temos visto quantas contradições são criadas e reforçadas. É triste constatar (enquanto antropólogo dedicado aos calendários e espiritualidades mayas) que as redes new age do cacau (incluve vinculadas a um conhecido “falso calendário maya”), atualmente, já trazem mayas ao Brasil, cobrando caro por suas cerimônias.
Acontece que, como o Brasil não é a Guatemala, a tendência mesmo de pessoa muy interessadas em espiritualidade maya é… Aceitar tudo de maneira mais acrítica, e sem obervar as redes que viabilizam tudo isso, para quem parte dos lucros vai, e por aí vamos (seguindo alienados, voluntária ou involuntariamente).
Não conhecemos os mayas e nem o campo da espiritualidade maya, mas aceitamos aqueles que as redes new age nos trazem como se grandes autoridades fossem. Da mesma maneira, mayas que chegam se associando a essas redes já dizem e mostram muito a que vêm, sem precisar abrir a boca. Se é preciso ter responsabilidade e pedir permissão para chegar na Guatemala, o mesmo vale para quem chega ao Brasil. Se estão reforçando a mercantilização e fortalecendo egrégoras que historicamente são contrárias à expansão da espiritualidade maya no Brasil (e que deturparam os calendários mayas de inúmeras formas, e enganaram muitas pessoas), e que sistematicamente atacam quem trata os temas mayas com responsabilidade, talvez devamos começar a questionar alguma coisa.
As contradições capitalistas se diversificam a cada dia; gosto de lembrar que new age é “parte de um contexto mais amplo da cultura consumista. Vários teóricos sociais propuseram que, crescentemente, estilos de vida, identidade, significados culturais e até espirituais tornaram-se commodities para compra” (ALDRED, 2000, tradução minha). Hoje é cacau e espiritualidade maya, enquanto seguimos nos alienando nas redes hegemônicas (que deixam de ser virtuais, mas seguem reproduzindo tudo aquilo a que combatemos, enquanto militantes comprometidos com a luta anticapitalista).
Você conhece quem você segue, reforça, reproduz? Conhece as pessoas que vêm de fora, de outras culturas? É sempre bom, maravilhoso, saber em que campo você está se situando e, se necessário, lidar de frente e de maneira madura com suas próprias contradições. É justo que as pessoas reconheçam que são de alguma linha ou egrégora que puxa para as redes new age, mesmo se essas redes new age forem de “espiritualidade maya”. O que não é justo é seguir alienando os brasileiros em relação ao campo da espiritualidade maya: quem está no Brasil precisa saber estar na Guatemala, precisa ter formação e muito cuidado para entender donde está pisando, ou estará sujeito a cair nas mesmas redes new age que (alguns) dizem combater e ter rompido. E da pior maneira: as financiando dentro de paradigmas neoliberais e de apropriação (multi)cultural.
Só é ingênuo quem desconhece suas contradições, quem escolhe escamoteá-las ou não lidar com elas, ou relativizar em favor dos seus processos pessoais ou legítimos sentimentos pessoais e de egrégora acaba, na verdade, por capitular às lógicas capitalistas e neoliberais, e metendo medicinas ancestrais no meio. Sua espiritualidade é mesmo “politizada”?
A espiritualidade maya com a qual me “conecto” é tudo, menos alienada. Não existe espiritualidade maya sem conhecimento do campo. E nem existem mayas que buscam internacionalizar-se e que estejam fora da sociedade capitalistas - assim como nós. Mas as “difusas redes new age” dizem muito: é possível estar na sociedade capitalista sem chafurdar na lama do neoliberalismo. Mayas que vêm ao Brasil escolhem como chegam e com quem chegam. Não existe “time bobo” no futebol - nem na espiritualidade Maya. Quem se associa às redes new age e ao neoliberalismo, sendo maya ou não, sabe o que está fazendo e presta um grande desserviço aqui (e lá, e donde estejam) em termos de emancipação não só espiritual, mas social e econômica.
Emoções também podem ser armadilhas, nos ensina o dia Tz’i’ do calendário ritual maya. Quem caiu na emoção do falso calendário no passado, pode cair perfeitamente na emoção do “cacau maya” viabilizado por redes new age e que reforçam, direta ou indiretamente, o falso calendário ao qual, devem crer, realmente se desprendarem. Daí vem a superestrutura (pra dizer que tem Marx) e… Outra rasteira de Exú, este zombeteiro maravilhoso.
A superestrutura é fruto de estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação de seu domínio. Trata-se da estrutura jurídico-política e a estrutura ideológica (Estado, Religião, Artes, meios de comunicação, etc.). [fuente]
Segue-se apenas que é necessário, tantas vezes quantas possível, submeter as decisões tácticas à contraprova dos novos acontecimentos políticos. Essa contraprova é necessária, tanto do ponto de vista da teoria como do da prática: da teoria, para nos convencermos pelos factos da justeza das resoluções adoptadas e darmo-nos conta das modificações que é preciso introduzir-lhes, em resultado dos novos acontecimentos políticos surgidos; da prática, para aprendermos a inspirar-nos verdadeiramente nessas resoluções, a vê-las como directivas destinadas a uma aplicação imediata e efectiva.
Uma época revolucionária oferece, mais que qualquer outra, graças à rapidez vertiginosa da evolução política e à exasperação dos choques políticos, a oportunidade de praticar essa contraprova. A antiga “superestrutura” abre fendas, enquanto a nova é edificada à vista de todos pelas mais diversas forças sociais, cuja verdadeira natureza é revelada na acção. [fuente]
Existem grupos dominantes na moda do cacau e na moda da internacionalização da espiritualidade Maya, também. Conhecê-los é… Conhecer mais a nossa sociedade, o modo como o capitalismo e o neoliberalismo “multicultural” funcionam, do que propriamente conhecer o Universo que eles dizem representar, no fim das contas. Suas ações, reações e escolhas revelam quem são, bem como os novos modos de mercantilização cultural e espiritual.
Apropriar-se é arte de 13-Caminhos que duram uma eternidade, é arte de caminhar e conhecer para além da superfície, o campo pra além das redes e da superfície… Quem são esses que vieram ao Brasil? Você não sabe. Essa arte é saber donde anda, com quem se associa, O TEMPO TODO. Não é arte que se aprende de qualquer jeito, muito menos em 73 ou 730 dias. Chegou num campo novo? Aprenda mais, antes de circular e reproduzir o primeiro que apareça (mesmo se for maya e você quiser muuuuito aprofundar em calendário maya).
“Somos livres nas redes, estamos nos empoderando e somos muy críticos a tudo que está aí” - pensam muitas pessoas de coração cheio de boas intenções, mas que retroalimentam a apropriação cultural em níveis cada vez mais perversos, capazes de envolver emocional e espiritualmente muitas pessoas com uma roupagem tradicional de quem, no fim das contas, capitula diariamente ao mundo neoliberal e seus modos (cada vez mais “sutilmente” violentos) de relação e exploração.
**Empolguei a massa,
Levantei poeira…
Fiz o mundo balançar,
Amor,
Até quarta-feira, é…
Cantei no coral,
Mundo negro,
IlÊ Aiyê…
Empurrados pela massa
Até o dia amanhecer!
**Ref
ALDRED, Lisa. Plastic Shamans and Astroturf Sun Dances: New Age Commercialization of Native American Spirituality. American Indian Quarterly, Lincoln: University of Nebraska Press, v. 24, n. 3, p. 329-352, 2000.