Originalmente postado em 13 de Maio de 2018, no Medium. Repostando aqui por razões de “abandonei o Medium faz tempo”(?) e “Israel tá em pauta de novo”, inclusive na Guatemala. (From the river to the sea, Palestine will be free!)
0. Introdução da introdução — Alô, Medium!
Antes de ir ao que (me) interessou de fato no último dia 22 de abril, permito-me uma breve contextualização:
Este é meu primeiro texto publicado no Medium. Minha maior motivação, sem dúvida, foi a censura “por tabela” que sofri, no Facebook, ao falar sobre o mesmo assunto aqui tratado. Ao fazer meus comentários a partir do compartilhamento de uma crítica guatemalteca ao decreto 12–2018 (consumação da iniciativa de lei 5242), que estabeleceu a celebração do dia da independência de Israel na Guatemala, acabei perdendo meu texto original. A razão da censura do post guatemalteco, ao que tudo indica, foi o uso de uma imagem (sobreposta por um sinal de “proibido”) do centro da bandeira de Israel (a estrela de David) como sendo um símbolo religioso. Portanto, um post com escopo e legenda bastante claros — de cunho político — pode ser enquadrado enquanto intolerância religiosa. Fosse a bandeira dos EUA sendo queimada (algo mais agressivo que uma imagem “de paint”) talvez isto teria muito menos chances de ocorrer, por exemplo.
O símbolo da estrela no centro da bandeira de Israel é um caso de uso político do religioso — talvez o mais complicado de lidar. Ser identificado como antissemita (ou mesmo anti-cristão) pode ser muito fácil, especialmente considerando a presença de igrejas neopentecostais que se apropriam do judaísmo/de símbolos judeus no Brasil e na Guatemala (no mundo?) — aparentemente, em alguns casos incorporam até mesmo a própria bandeira de Israel, ainda que os “olhos” estejam voltados para a Israel bíblica. Porém, tratando-se da bandeira que corresponde a um Estado nacional estrangeiro (e se o escopo for político, é isto que interessa), e parceiro histórico dos EUA (e das suas duas mãos inteiras no golpe de Estado na Guatemala, consumado em 1954, e da consequente guerra civil naquele país), devemos ser ainda mais cuidadosos ao tratar o caso em questão (e em especial as reações contrárias) como de cunho religioso. Sendo assim, não devemos identificar automaticamente reações, que seriam muito mais concernentes a um certo nacionalismo guatemalteco, com o antissemitismo. Fato é que os guatemaltecos, diria eu que muito mais cansados e indignados (!) que os brasileiros nos últimos anos (com a corrupção, inclusive), viram esta bandeira no seu Congreso, no contexto da defesa de mais uma lei que, para muitos, não tem sentido algum e, mais do que isto, pode tratar-se de uma ofensa histórica. Então falemos disto, que é o que me interessa e nada tem a ver com religião por si. O que se segue é uma tentativa de reconstrução — melhorada — do texto censurado pelo Facebook.
1. Introdução “agora vai!” — Sobre o “microrreformismo do calendário oficial”
Quem me conhece um pouco mais sabe que, para além dos calendários mayas e mesoamericanos, me interesso por calendários em geral. Nos últimos anos, tenho me interessado particularmente pelo que, desde 2015 (num trabalho do mestrado), passei a chamar de “microrreformismo do calendário oficial”, uma prática comum e reiterada no Estado moderno. Este interesse, portanto, se insere num escopo mais amplo da minha atenção: os usos políticos dos calendários (em qualquer sociedade). Sendo um especialista (sic) “em Guatemala”, e particularmente interessado por calendários, um caso recentíssimo atraiu minha atenção: a da criação de um “dia da amizade” entre Guatemala e Israel, a ser celebrado anualmente a cada dia 14 de maio (mesmo dia da independência de Israel). Antes de abordar este caso com algum detalhamento, entretanto, e respeitando a linha do texto original censurado no Facebook, começo partindo do mesmo ponto que parti em 2015:
Está evidente (não só para mim) que, no âmbito do Estado nacional (em virtualmente QUALQUER Estado nacional), mais especificamente no poder legislativo, há uma profusão de leis destinadas à incorporação, ao calendário oficial (isto é, do Estado), de datas comemorativas e efemérides variadas, de (alegada) relevância social, histórica (etc), a nível municipal, estadual e federal. O milagre da multiplicação deste tipo de iniciativa, salvo equívoca, evidencia que o calendário oficial passou a ser muito mais “fatiado” nas últimas décadas, sem dúvida atendendo a demandas crescentes locais, regionais, nacionais e internacionais — que, não por coincidência, coincidem com aberturas neoliberais e multiculturais dos Estados, diriam alguns (e em alguns Estados mais do que em outros, claro).
Neste contexto, “todos” podem eventualmente ter seus dias dentro do ano, sendo “reconhecidos” pelo — e “incluídos” no — Estado. “Todos” podem ter seus dias dentro do ano. Somos todos “Brasil”, claro que também “merecemos” um lugar ao “Sol” que são os 365 dias do ano. Desde o “arqueólogo”, o “historiador”, o “antropólogo”; até os “índios”, “negros”… Todos merecem o seu lugar ao “Sol”. Mas a criação de um “dia do grupo marginalizado X” é um símbolo de reconhecimento tardio — talvez implicando no fomento de uma festinha aqui, outra ali, palestrinhas acadêmicas e memes no Facebook… Algo que, por si, não muda em absolutamente nada as condições materiais de vida/existência desses grupos marginalizados, eles não se tornam menos marginalizados por isto; no máximo, pode se tentar criar um orgulho nacionalista ou uma identificação com o Estado (e, pensando no contexto de aprovação de uma lei deste tipo, de uma identificação com os políticos proponentes da lei/efeméride). Pois bem, muito disto eu comentei anteriormente, em posts no Facebook (e no tal trabalho de 2015, ainda inédito).
Portanto, em resumo: me interesso muito pelo que chamo de “microrreformismo do calendário oficial” e sou extremamente crítico e desconfiado dos projetos de lei (portanto, projetos políticos) deste tipo, especialmente aqueles com apelo para a “representatividade” de grupos que historicamente não têm “entrada” no Estado e passam a ser “reconhecidos” com algo simbólico como uma data num calendário inchado, e que atualmente pode ser disputado (como projetos de lei sem grande repercussão ou tensão política) em favor de “tudo e todos”. No calendário do Estado, cabe todo mundo; no Estado e em suas políticas públicas, nem sempre.
Os casos de reconhecimento de setores da “sociedade civil” através do estabelecimento de efemérides oficiais, reconhecidas pelo Estado, costumam servir apenas como troca de favores entre vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores, etc (faltou alguém do legislativo?!). São pequenas moedas de troca, em geral não causam qualquer problema político, elas tramitam como anjos pairando nas nuvens, elas não têm repercussão midiática alguma a não ser na fanpage alternativa sobre plantio orgânico de cerejas nanicas, um pequeno mercado que está ganhando força numa pequena cidade qualquer do interior — uma bela data comemorativa municipal, que nem precisa ser feriado, para incentivar seu consumo, produção, ou seja compra e venda! Olha aí. Fórmula básica, acessível, “democratizando” o acesso a algum “apoio” (mesmo que se possa argumentar “simbólico”) do Estado. Beneficiando alguém silenciosamente (alguns agricultores locais mais do que outros), de alguma maneira que talvez não seja tão fácil mapear benefícios diretos e indiretos deste tipo de lei.
2. Breve apresentação do projeto de lei 5242 / decreto 12–2018 (Congresso da Guatemala)
A iniciativa de ley 5242, que deu origem ao decreto 12–2018, pode ser consultada na íntegra em https://www.congreso.gob.gt/assets/uploads/info_legislativo/iniciativas/Registro5242.pdf http://www.lexglobal.com/documentos/1503507513.pdf [link original, quebrado].
O projeto teve como objetivo declarar o dia 14 de maio de cada ano como “Día Nacional de la Amistad entre la República de Guatemala y el Estado de Israel” e, como a lei proposta é bastante curta (apenas 3 artigos), deixo-a na íntegra (e no original do projeto) aqui:
“LEY DEL DÍA NACIONAL DE LA AMISTAD ENTRE LA REPÚBLICA DE GUATEMALA Y EL ESTADO DE ISRAEL
Artículo 1. Objeto. La presente ley tiene por objeto conmemorar a nivel nacional el establecimiento de relaciones de amistad entre el Pueblo Judío y el Pueblo Guatemala.
Artículo 2. Declaración: Se declara el día catorce (14) de mayo de cada año, como el DIA DE LA AMISTAD ENTRE LA REPÚBLICA DE GUATEMALA Y EL ESTADO DE ISRAEL. Debiendo a través del Ministerio de Educación Pública y demás entidades gubernamentales, promover a nivel nacional, el desarrollo de actividades culturales que rememoren la amistad, cooperación y ayuda entre los pueblos, así como la búsqueda de la paz, la libertad y el desarrollo, con base al respeto mutuo, la tolerancia y no discriminación por razones de orden étnico, cultural y religioso.
Artículo 3. Vigencia. La presente Ley entrará en vigencia el mismo día de su publicación en el Diario oficial.”
Este texto foi aprovado na íntegra e publicado como decreto 12–2018, com duas ou três modificações na redação que nada modificam o texto original em termos de conteúdo.
De cara podemos perceber, então, que a data comemorativa proposta é acompanhada de recomendações sobre o que fazer no dia em questão — ou seja, algo esperado em leis deste tipo, que “reformam” o calendário oficial para incluir determinada efeméride. Mas, muito além de eventos, feiras locais, a lei deixa explícito no texto uma incumbência do poder público, especialmente do ministério da educação, em desenvolver iniciativas para o “fomento” da “amizade” entre Guatemala e Israel — e, implicitamente, isto começa na escola. Porém, o fomento desta amizade na escola pode significar um “apagamento” das contradições desta relação e do papel histórico de Israel como cúmplice da ditadura militar durante a guerra civil guatemalteca.
Este texto, especialmente após a censura “por tabela” do Facebook, é destinado justamente ir na contramão do que parece ser a intenção do atual governo guatemalteco e dos deputados que aprovaram dita lei, que quiçá se trate de uma idealização ou romantização da relação com Israel, vista de uma perspectiva parcial alinhada às elites e aos apoiadores da ditadura, para dizer o mínimo.
Bueno, o texto publicado em diário oficial é acompanhado de um breve resumo do que seriam as justificativas e prerrogativas que embasariam a criação da lei, que constam também do modelo de decreto incluso no projeto. Estas “justificativas” (“exposição de motivos”) mais extensas, entretanto, podem ser vistas no arquivo do projeto de lei: em resumo, o texto faz praticamente um relato histórico que remonta à primeira guerra mundial e visa contextualizar minimamente o pós-guerra, privilegiando os trâmites da questão Palestina na ONU e dando destaque à figura de Jorge García Granados (como primeiro embaixador da Guatemala em Israel), bem como à assinatura de acordos entre os países, entre 1961 e 1993.
Algo interessante, que não comentarei mais adiante, é o fato de que o projeto aparentemente tentou dar uma estética “progressista” ao projeto de lei, ao lembrar que o Estado de Israel (e tudo de crucial, nos anos 40, para sua criação e etc, que será abordado aqui, adiante) se deu durante o primeiro governo da “revolução” (bota aspas):
De acordo com o texto do projeto de lei, as justificativas dadas e o fato de a Guatemala ter contado com um consul ad-honorem ainda em 1947, Isaac Weisman, “confirma que los lazos de amistad entre el Pueblo de Israel y la República de Guatemala, es de larga data, siendo esté proceso producto del esfuerzo colectivo de personas, así como de funcionarios públicos que conformaron el gabinete de gobierno, del denominado Primer Gobierno de la Revolución, tal como señala el historiador Arturo Taracena Arriola en la publicación Guatemala y la creación del Estado de Israel.”
— — — — — — — Para ver o referido texto de Arturo Taracena, acesse https://s3.amazonaws.com/asies-books/books/ra1998_4.pdf http://asies.org.gt/pdf/ra1998_4.pdf [link atualizado].
No texto do historiador citado no projeto de lei, fica claro no mínimo uma dubiedade: à época, as forças progressistas e o primeiro governo guatemalteco da “revolução” (período de 1944 a 1954, definitivamente de governos “de esquerda reformista”, cujo segundo governo, que buscava aprofundar mais reformas, sofreu o golpe de Estado patrocinado pela CIA em 1954). Mais do que isto, uma publicação de propaganda do governo chegou a reivindicar o papel importante da Guatemala como apoiador da criação do Estado de Israel, através de García Granados, que estaria “seguindo a política de seu governo”.
Entretanto, ainda segundo o texto do historiador, fica claro que García Granados estava à direita do governo, ou pelo menos esta era a impressão de parte do próprio corpo diplomático guatemalteco daquele então. Como veremos a seguir, a figura de García Granados é muito mais complexa (justificando uma filiação com a direita israelense), e ademais parece ser de um grande oportunismo reiterar que o reconhecimento de Israel se deu durante o governo “revolucionário” guatemalteco, ao mesmo tempo em que se omite que Israel contribuiu na manutenção da ditadura militar que seguiu o golpe sobre o que era a continuação legítima do governo “revolucionário” que reconheceu o Estado de Israel.
Não abordarei mais a seguir, então, as possíveis contradições do governo guatemalteco de esquerda da época, e reitero que qualquer condenação do governo pode incorrer em anacronismo, e este anacronismo se torna real quando se reivindica tal governo dos anos 40 para reafirmar uma “amizade” com Israel nos termos atuais.
Em resumo, o projeto de lei foi apresentado em fevereiro de 2017, a lei aprovada no congresso em 19 de abril último (2018) e emitida para o poder executivo no mesmo dia, que sancionou no dia 8 de maio, com publicação no dia 10 de maio do mesmo ano. Portanto, a lei passou a valer em 10 de maio, de modo que amanhã (14 de maio) será a primeira celebração do dia da amizade entre Guatemala e Israel, que como o próprio projeto esclarece coincide com o “dia da independência de Israel”, justificando o chamarmos assim informalmente, como muitos guatemaltecos fizeram.
Gostaria de ter aprofundado mais no projeto de lei em si e analisado os três debates realizados no congresso, o que talvez faça no futuro, mas apesar de meu ponto de partida ser o “microrreformismo dos calendários”, escrutinar a lei em si demonstrou-se menos importante a curto prazo do que contextualizar a “amizade” entre Guatemala e Israel para além do texto do projeto.
— — — — — — — Links oficiais de interesse sobre o projeto de lei e o decreto, respectivamente, direto da página do congresso: (1) https://www.congreso.gob.gt/iniciativa-de-ley-detalle/?id=4663 /// (2) https://www.congreso.gob.gt/consulta-legislativa/decreto-detalle/?id=13475
3. Esboçando as implicações de uma data comemorativa para aproximar Guatemala de Israel (e dos EUA)
Bueno, até agora eu só contextualizei o que me trouxe ao Medium, e fui divagando sobre o escopo mais amplo do título e meu ponto de partida, que é o de “microrreformas calendáricas” que poderiam ser vistas como “inofensivas” (que, como dito, são “imunes” pra tramitar no poder legislativo “pairando como anjos” e em geral com nenhuma oposição consistente da opinião pública), e busquei apresentar minimamente o projeto de lei na Guatemala.
Se hoje “todo mundo” (até o historicamente oprimido) pode ter um “dia” pra chamar de “seu”, nem sempre foi assim. Isto implica em concluir duas coisas:
1 — O “microrreformismo do calendário oficial” existe há muito tempo.
2 — Este é um instrumento historicamente usado e abusado pelas elites econômicas e pela burocracia estatal, por governos e bancadas, ontem e hoje.
Todos os exemplos pequenos que mencionei (“dia do antropólogo” só serve pruns intelectuais bundas-mole se vangloriarem, outro com potencial repercussão econômica local e regional, por exemplo) nem se comparam ao caso do decreto 12–2018, oriundo do projeto de lei (iniciativa de ley) 5242, recém-aprovado no Congreso Nacional da Guatemala. Este decreto estabelece a celebração do “Día Nacional de la Amistad entre la República de Guatemala y el Estado de Israel”. Adiarei um pouco a análise do texto do projeto em si, por boas razões.
Bueno, isto estabelece, no mínimo, uma relação de um tipo bem diferente, no que se refere ao “microrreformismo calendárico” mais corriqueiro: não se trata de uma relação entre “Estado” (e seus representantes da vez) e “sociedade civil” (através de seus grupos, religiões, categorias, etc), mas sim entre dois Estados. Portanto, este tipo de efeméride para celebrar uma “amizade” entre Estados nacionais (e, por extensão, tudo o que eles representam) tem implicações diretas nas relações bilaterais entre nações, sendo objeto de interesse, lobby ou mesmo proposição por parte das diplomacias e governos destes países. São, assim como todas as outras “leis de efemérides”, conjunturais: a razão do seu reconhecimento e incorporação obedece a relações sociais determinadas e bem localizadas historicamente. Em se tratando de uma data comemorativa de cunho político ressaltado, o elemento conjuntural torna-se ainda mais relevante, e por outro lado também aumenta o interesse dos legisladores e o potencial de tensão política. Neste caso específico, entretanto, uma olhada para o passado, antes de falar sobre a conjuntura, parece fundamental e imprescindível.
É claro que a tal tensão potencial, mencionada agora, dificilmente existiria caso se tratasse da busca por uma aproximação entre Guatemala e, digamos… Nova Zelândia. Ou mesmo Brasil, talvez (apesar de os escândalos de corrupção com construtoras brasileiras, nomeadamente a Odebrecht, terem rolado na Guate também). E digo isto por uma simples razão: que eu saiba, Nova Zelândia e Brasil não possuem muita influência na história guatemalteca, menos ainda participação polêmica e crucial em momentos de crise do Estado e guerra civil. Bueno, já o caso de Israel é bem diferente disto e portanto, com razão, é capaz de gerar muitas tensões e questionamentos. E reações nacionalistas (à esquerda e à direita), que não devem ser confundidas com antissemitismo.
Pois bem, para entender quão polêmica é a iniciativa de celebrar, na Guatemala, o dia de independência de Israel (ainda que com outro nome), é preciso no mínimo contextualizar esta amizade historicamente. Não é meu interesse me alongar muito nisto, e menos ainda “esgotar” tal história, mas sem dúvida há alguns elementos particularmente relevantes e que “ressurgem” (literalmente ou não) através da referida lei.
4. A “amizade” entre Israel e Guatemala: um breve histórico
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que a Guatemala teve um papel importante na década de 1940, no âmbito da recém-criada ONU, especialmente no que se refere a Israel: o representante guatemalteco à época, Jorge García Granados, foi importante no plano de partição da Palestina e primeiro (depois dos EUA?) a reconhecer oficialmente a legitimidade da independência do Estado de Israel. Conforme comenta Cheryl Rubenberg, que abordou com propriedade (em 1986) as relações entre Guatemala e Israel, àquela altura García Granados já servia como embaixador em Washington, e era pessoalmente envolvido com a causa sionista muito antes de ocupar o posto de representante da Guatemala no Comitê Especial das Nações unidas para a Palestina, da ONU (UNSCOP, na sigla em inglês). Não por acaso, a Guatemala acabou sendo a primeira nação a estabelecer relações diplomáticas com Israel e a instalar uma embaixada em Jerusalem (https://nomada.gt/blogs/jimmy-morales-la-biblia-y-la-embajada-en-jerusalen/), tendo como primeiro embaixador o próprio García Granados.
Mais do que isto, aquele senhor teria inclusive se encontrado pessoalmente (de maneira secreta) com Menachem Begin e Yitzhak Shamir, líderes da velha direita sionista e acusados de terrorismo, em um “underground terrorista” em 1947 (https://www.merip.org/mer/mer140/israel-guatemala). Três décadas depois, eles se sucederam no cargo de primeiro-ministro de Israel, pelo partido Likud (“Consolidação”). Mas ainda nos anos 40, o partido criado por Begin, Herut (“Liberdade”), foi acusado por ninguém menos que Albert Einstein, Hanna Arendt e outros “judeus americanos” de ser um partido alinhado (inclusive em termos de métodos e ideologias) aos partidos nazistas e fascistas, sendo o Herut um partido “terrorista, de direita, [uma] organização chauvinista na Palestina” (https://www.haaretz.com/jewish/.premium-1948-n-y-times-letter-by-einstein-slams-begin-1.5340057).
Apesar da importância diplomática “da Guatemala” na década de 1940, aparentemente isto não foi exatamente valorizado em Israel, a não ser… Quando Begin, velho amigo de García Granados, assumiu o cargo de primeiro-ministro de Israel, em 1977. Esta seria, portanto, a origem histórica de uma valorização mais evidente — e oficial —, por parte de Israel do papel fundamental desempenhado por Garcia Granados: pelas mãos de Begin e seu governo de direita sionista. Essas afinidades — velhas e novas,destaca Rubenberg, ganharam nova força quando Begin chegou ao poder em Israel.
Isto posto, e esclarecido por quem, e em que contexto, a atuação de García Granados foi de fato lembrada e valorizada (e a quem se deve a “fixação” desta memória no imaginário das relações entre Guatemala e Israel), faz-se necessário um salto definitivo para a década de 1970, de maneira a contextualizar a participação de Israel como apoiadora do Estado guatemalteco durante a guerra civil na Guatemala (Rubenberg, 1986, tradução livre minha):
“Da parte dos governantes guatemaltecos, Israel é visto como líder mundial na prática da contrainsurgência, e e busca Israel por conselhos, modelos, expertise e armas. A assistência de Israel começa em 1971, mas tomou maior importância após 1977, quando os generais guatemaltecos rejeitam o apoio militar estadunidense em resposta à pressão da administração Carter para remediar suas brutas violações dos direitos humanos. Israel não demonstrou relutância similar para trabalhar com o país que um advogado guatemalteco caracterizou como ‘uma nação de prisioneiros’.”
Este trecho talvez seja o mais esclarecedor deste texto. Um fator conjuntural relevante nos Estados Unidos (a eleição de Jimmy Carter) fez com que o imperialismo estadunidense recuasse, especialmente no que se refere à Guatemala, incentivando inclusive sanções. Não devemos, entretanto, ver isto de maneira inocente como se a posição de Carter fosse a posição unitária “dos EUA” e os apoiadores estadunidenses tivessem simplesmente se ausentado em favor de uma maior presença israelense. Antes, Israel leva a cabo a continuação do golpe/manutenção da ditadura militar, defendendo interesses econômicos próprios e, ao mesmo tempo, defendendo interesses históricos dos EUA (a despeito do que estaria no projeto do governo estadunidense de ocasião).
Me perdoem por não contextualizar o golpe, patrocinado pela CIA em 1954 e que inaugurou a onda de golpes de Estado na América Latina na segunda metade do século XX que atenderam a muitos interesses estadunidenses. Recomendo o livro “A CIA contra a Guatemala”, do camarada Leonardo Wexell Severo, o livro “Revolução Guatemalteca” da coleção sobre revoluções da editora da UNESP, e a dissertação de mestrado da compa Anna Turriani.
Para o contexto que nos interessa aqui, basta afirmar (e não há dúvidas sobre isto), que o período em que Israel foi principal parceiro da Guatemala, especialmente entre 1977 e 1983, foi o período de maior violência na guerra civil, o pior momento do genocídio guatemalteco. Uma época de grandes massacres contra comunidades campesinas e indígenas mayas — o que ajudou a encurtar a ditadura militar, que logo na metade da década de 80 já não existia formalmente, apesar de a guerra civil ter continuado, na história oficial, até quase 1997. Em resumo, em 1977 Carter estava apenas tentando sair do que estava desenhado como uma escalada ainda maior da violência, e assim abriu um verdadeiro mercado para Israel (a nível de Estado, iniciativa privada e consultoria de ex-militares, por exemplo — é bom ressaltar que nem toda a participação se deu a nível estatal) dar todo o suporte possível/necessário naquele momento tão crucial quanto triste da história guatemalteca, para de fato implementar estratégias israelenses de contrainsurgência, executadas especialmente ao interior rural da Guatemala.
Não resta dúvida de que, na minha busca, o texto de Rubenberg foi particularmente revelador para mim, uma referência muito mais rica em informações — e nomes, e datas — sobre tudo isto do que eu poderia reproduzir aqui. Conhecido por “carniceiro de Nebaj” e outros “elogios”, o general Efrain Ríos Montt comandou, na Guatemala, o período mais dramático em termos de violência. Seu curto governo, que durou menos de um ano e meio, o tornou o ditador militar mais lembrado e odiado da Guatemala, sendo deposto pelo seu ministro de defesa, que tratou de abrandar a aplicação dos piores métodos de tortura e assassinato (o que não significa declínio da parceria com Israel).
— — — — — - — Mais sobre Ríos Montt em https://cmiguate.org/el-legado-de-rios-montt-el-criminal-de-guerra-mas-notorio-de-guatemala/
O carniceiro em questão instituiu um “programa de pacificação rural”, segundo Rubenberg planejado com alegada participal de Israel, que premiava com casa e comida os campesinos que colaborassem com a ditadura, usando de força e de ameaça para os que não o faziam.
“Uma outra parte do ‘plano Victoria’ de Ríos Montt, implementado com assistência israelense, é o recrutamento dos próprios campesinos em patrulhas de defesa civil. Essas patrulhas efetivamente colocaram campesinos contra campesinos, sendo fundamental para a campanha de contrainsurgência. O pertencimento nessas patrulhas, organizadas pelo exército, é compulsória. Aqueles que se recusam a fazer parte delas são designadas como subversivas.” (Rubenberg, 1986, tradução livre minha)
Não bastasse os comandantes militares colocarem mayas e campesinos (militares) contra mayas e campesinos (civis), o avanço dos planos de Ríos Montt instalou esta divisão internamente cada vez mais, ao fortalecer grupos para-militares dentro das próprias comunidades do interior. Isto possibilitou, mais uma vez, uma dicotomia ainda mais exacerbada entre militares e para-militares de um lado, e “terroristas” e “comunistas” (usados como sinônimos) de outro lado, de modo a incluir aqui milhares de civis que se recusavam a cooperar. Isto contribuiu para que seu sucessor pudesse ter um ambiente de maior controle (e da imposição do medo), portanto propício para uma diminuição da violência perpretada pelo Estado, diante dos escândalos de Ríos Montt e sua repercussão internacional.
Bueno… Isto é apenas uma pequena parte da história da Guatemala e de seus vínculos com Israel, neste caso privilegiando um pouco do início de Israel (quando a relação entre os países começa, portanto) e um bocado mais do pior período da ditadura guatemalteca, em que o “Estado de Israel” se tornou justamente o principal parceiro da “República da Guatemala” — teria sido este o período de maior “amizade” entre os dois países, portanto algo relevante de se lembrar diante de um decreto que estabelece um “dia da amizade” entre eles.
Já na metade dos anos 80, e precisamente com as transições políticas em 85/86 (leia-se fim formal da ditadura militar, principalmente), o movimento maya passa a ganhar muito mais espaço no debate público guatemalteco — o que se dá pela valorização da identidade “maya” levada a cabo por intelectuais, mas também através da mobilização popular dos indígenas que tiveram lugar ainda no começo dos anos 80, e que passaram a se chamar cada vez mais de “mayas”. Dentro deste contexto, e no período que se seguiu até pelo menos meados dos anos 2000, a relação com outros países (que não Israel e EUA) se fortaleceu em alguns aspectos, como foi o caso por exemplo da Noruega, que ajudou a financiar o movimento maya e, direta ou indiretamente, a abertura neoliberal do Estado para participação indígena.
5. A conjuntura da proposição e aprovação do “Día Nacional de la Amistad entre la República de Guatemala y el Estado de Israel”
Finalmente, posto este ensaio histórico limitado, resta uma seção para comentar, ainda mais rapidamente (na certeza de que os leitores conhecem melhor o contexto atual e podem encontrar facilmente dados mais completos e análises muito melhores que as minhas), a conjuntura atual.
Em 2015, uma grave crise de corrupção estourou na Guatemala (em cima da cúpula do governo federal), o que mobilizou uma grande unidade nacional (esquerda, direita, centro, [quase] todo mundo), quiçá uma “mescla” do 2013 com o 1992 “brasileiros”. Foi, talvez o período de maior mobilização política na Guatemala desde os anos 80; foram dezenas de manifestações gigantes (para não dizer manifestações diárias) exigindo as renúncias/deposições da vice e do presidente de então (também já falei dessas coisas antes e não vou citar os nomes deles dessa vez, pra atiçar a curiosidade quem estiver interessado). Ambos caíram, nesta ordem, meses antes das eleições na Guatemala. Vamos aos nomes da vez…
Qualquer “esperança” guatemalteca (e especialmente à esquerda) com a energia, as cores, músicas e sorrisos das ruas, na onda de manifestações em 2015, foi bastante frustrada nas eleições. Além de uma esquerda dividida e “nanica” (em boa parte ainda herdeira direta das guerrilhas marxistas que combatiam a ditadura), com poucas cadeiras no congresso “como tem sido”, o eleito como presidente da Guatemala, Jimmy Morales, seria todo um caso à parte — que eu também não vou aprofundar.
A imagem de Morales era a de um humorista, conhecido na TV e “sangue novo” na política, capaz de defender a fábula de quem não tem nada a ver “com a política tradicional que está aí” — neste aspecto, parecido de um lado com o Tiririca brasileiro e, de outro, com o Trump estadunidense. Porém, por outro lado, ele contou com o apoio substancial de militares, inclusive saudosos da ditadura (!), bem como conservadores, cristãos e “laicos”, em geral dos dispostos a uma “nova” e repaginada “mão dura”, no que se refere à segurança pública, e/ou a colocarem um “cristão”, defensor da moral e dos bons costumes, que supostamente não teria rabo preso para combater a corrupção de maneira irrestrita, etc, etc.
Pulando muita coisa recente, desde sua eleição — pois falar das tretas todas seria impossível e também, em dado momento, me afastei de um acompanhamento mais próximo, como havia sido em 2015 pela fervura política…
Vamos ao que interessa:
É possível que todo leitor que se atreveu a chegar até aqui já esteja ciente — ou ouviu falar — que o atual presidente dos EUA (ou EEUU), Donald Trump, tomou a decisão de transferir a embaixada dos EUA em Israel para a cidade de Jerusalém. Esta é uma mudança diplomática problemática e criticada mundo afora; no começo dos anos 80, como reação à “lei de Jerusalém” (que reconhecia a capital israelense na cidade unificada, desrespeitando o direito Palestino a uma parte de Jerusalém), a ONU recomendou que quem tinha embaixada em Jerusalém a retirasse. É basicamente nisto que Trump está fazendo os EUA “voltarem atrás” (apesar de os EUA terem votado pela abstenção à época), ainda que o conflito não tenha sido solucionado e não exista, na prática, uma Jerusalém Palestina até hoje. Trata-se de um reconhecimento ou uma validação diplomática extra da posição que Israel assumiu há quase 40 anos. E a Guatemala (leia-se governo de Morales) vai, mais uma vez, a “reboque” dos EUA (leia-se governo de Trump) nessa questão.
O texto já está longo, mas qualquer pesquisa mostrará como Morales foi “atrás” de EUA e Israel em Washington, e resolveu ser o primeiro a seguir a “orientação” de Trump, de mudar a embaixada da Guatemala para Jerusalém (além de EUA e Guatemala, só o Paraguai). Tentou também, com esta atitude, obter vantagens junto ao governo de Trump, e inclusive veiculou informações oficiais sobre encontro com Trump que foram desmentidas por Washington. A embaixada da Guatemala em Jersualém chegou a ser prevista para o dia 14 de maio, mas nesta data será a inauguração da embaixada de Trump, ficando a de Morales para o próximo dia 16 de maio (três dias após a publicação deste texto, portanto). Mas Morales chegará a Israel amanhã mesmo, portanto no dia da independência de Israel.
Se, por um lado, a decisão de Morales dá a entender certa subserviência aos EUA de Trump, há indícios suficientes para se afirmar que há também aspectos pessoais e religiosos envolvidos. Pois vejamos o que nos lembra o colaborador de Nómada, Diego Gutiérrez (tradução livre minha):
“Quando Jimmy Morales anunciou o traslado [da embaixada] no Facebook, concluiu seu post com o já familiar ‘Deus os abençoe’. Poucas horas depois, a resposta mais popular a esta publicação era: ‘Deus o disse em sua palavra, todo aquele que abençoar Israel, Deus o abençoará, e todo aquele que maldizer a Israel, Deus o amaldiçoará’.”
— — — — — - — Fonte: https://nomada.gt/blogs/jimmy-morales-la-biblia-y-la-embajada-en-jerusalen/
Isto demonstra como a decisão de Morales pode ter um grande apelo religioso, junto aos cristãos guatemaltecos, em especial protestantes.
Outro detalhe, no mínimo curioso, é de que o filho e o irmão de Morales estão respondendo por fraude e lavagem de dinheiro, de modo que o presidente tem sofrido mais pressões nos últimos tempos; há quem diga, na Guatemala, que mesmo esta lei “de Israel” é apenas mais uma “cortina de fumaça”, e não devemos simplesmente descartar esta impressão (seria necessário aprofundar mais na conjuntura, sem dúvida). Mas o curioso mesmo, no que se refere ao filho e ao irmão de Morales, e algo que indignou muitos guatemaltecos na última semana e com razão, é o fato de que eles pediram permissão à justiça guatemalteca para poderem viajar, junto ao presidente, para esta ocasião que é a inauguração da embaixada da Guatemala em Israel. Em se tratando de algo que causa ainda mais desgaste ao presidente (e estou acreditando que eles voltam com ele, pois seria muito pior pra ele), por outro lado, evidencia ainda mais como isto tudo também pode ser bastante pessoal/familiar/religioso para Jimmy Morales.
Obs.: não achei qualquer informação sobre a lei ser recíproca — ou seja, até donde sei Israel não estabeleceu, nem comemora oficialmente, datas relacionadas à Guatemala, sendo este um movimento unilateral por parte da Guatemala.
6. FIM
Pois bem… O projeto de lei parece querer ignorar a participação de Israel em alguns dos episódios mais tristes da história guatemalteca no século XX. Por isso é que este texto teve a intenção de levantar informações que permitam dar a ver o que os propositores da lei parecem querer esconder.
Se, por um lado, existem leis para criação de datas comemorativas que tentam “incluir os excluídos” — a nível simbólico — no “Estado” ou na representação de “Estado”, existem outras que visam reiterar velhos poderes e antigas relações (neste caso, entre Estados) convenientes às elites guatemaltecas e a setores saudosistas do exército.
O maior charlatanismo e desonestidade deste projeto de lei, a meu ver, reside em tentar dar ares “progressistas” à proposta, dizendo que o reconhecimento de Israel se deu durante o governo “revolucionário” guatemalteco, ao mesmo tempo em que advoga um apagamento de toda a história que sucedeu este mesmo governo em nome de uma “amizade” pouco recíproca (a não ser para as tais elites), e em que a Guatemala segue cedendo aos interesses de EUA e Israel pelas mãos de seus governantes.
Ah, e tem mais coisas recentes que estou omitindo, como a reação de alguns guatemaltecos contra o apoio ao Estado Palestino “ensaiado” por um presidente recente.
Brinde:
http://desacato.info/israel-cumplice-direto-do-genocidio-na-guatemala/
Saludos…