Essa coisa de calendário unificado e data universal de ano novo, podemos dizer, “é coisa de branco”! Ou de quem buscou - e logrou - hegemonia cultural/espiritual, exportando e impondo sua “tradição única” (que, mesmo “única”, ainda assim é diversa, relativa, sincrética), seu(s) deu(es), etc.
Mais um dia de Ilê Aiyê na minha vida (reparem pelos itans coletados como o calendário tradicional é a própria instituição do calendário “do Ilê Aiyê”). Mas de aula de ~matemágica Maya também (essa teve que ser gravada), Ifá e Exú me ajudem a descansar, mesmo que seja nas encruzilhadas com os 256 e 260. “O Ilê Aiyê é bom demais… Quando ele passa, todo mundo vai atrás! É coisa de negro… Coisa de neg[r]ão!”
Seja na (Meso)América, entre mayas, nahuas e outros povos, seja em África, entre diferentes grupos Yoruba (mas não apenas!), é possível observar que certas contas de tempo são compartilhadas de maneira a acolher mais as diversidades culturais (de cultivo), humanas. Falo de calendários que são estruturalmente iguais, mas que servem a (mais do que isso, são determinados por) propósitos locais, relacionados (via de regra) à agricultura e seus ciclos (no caso Yoruba, também à Lua, mesmo que de maneira aproximada - donde prevalece o ciclo de 4 dias). Na prática, diferentes grupos usam um mesmo calendário para contar o que podemos chamar de “ano” (365 dias ou cifra aproximada), mas que não é literalmente o mesmo pois suas datas de ano novo e aspectos qualitativos (como nomes dos meses e dias) mudam, a depender da etnia, da comunidade específica e sua tradição local (não só agrícola, mas espiritual e comercial)… Por isso, podemos falar em diferentes tradições, linhagens, vertentes nas “contas do ano”, ainda que a estrutura possa ser idêntica.
Este texto é apenas um ensaio, que teve de ser reduzido para ser publicado a tempo mas que busca compartilhar um pouco do que consegui levantar e compreender, desde os últimos meses de 2022, em minhas pesquisas sobre o “calendário Yoruba”. Como antropólogo, sou especialista em calendários mesoamericanos, considero que estou apenas começando a me aproximar de um novo campo (o das culturas e espiritualidades africanas, especialmente dos cultos tradicionais aos orixás). Mas também é um “velho” campo, em outro sentido, o do estudo dos calendários e suas diversidades, o que me traz certas vantagens como antropólogo.
Para exemplificar, podemos pensar no calendário gregoriano, este que usamos na sociedade ~globalizada e que marca o início do seu ano em primeiro de janeiro, e conta seus meses de janeiro a dezembro com durações variáveis, entre 28 e 31 dias. É possível nos apropriarmos desta estrutura, a mantendo “igualzinha” à original, mas decidir que o ano novo será em primeiro de julho, ou então… Dizer que hoje é 25 de Julho e não 3 de Junho. Neste caso, deixaria de ser o calendário gregoriano, ou pelo menos não poderíamos chamá-lo assim, já que o calendário gregoriano tem uma maneira de ser contado. Da mesma maneira um calendário Maya K’iche’ pode ter uma maneira de marcar o ano novo, diferente daquela do calendário Maya Kaqchikel, e portanto um calendário K’iche’ não é um calendário Kaqchikel, mas sim uma outra tradição que partilha do “mesmo” calendário estruturalmente (18 “meses” de 20 dias, mais 5 dias), mas não social e praticamente, falando. Os calendários são também marcadores de diferença, que seja entre os mayas ou em África podem contribuir muito para a compreensão das culturais, espiritualidades e vida cotidiana locais, uma vez que não há a ideia, dogma ou rigidez de um “calendário único”, mas sim autonomias mais locais, comunitárias, que ainda assim estão conectadas interregionalmente a outras tradições, que usam calendários que partilham, sim, de uma mesma estrutura.
Longe de pretender esgotar o assunto, parece-me uma singela contribuição (mais do que isso, compilação, neste momento mais “oral” - ensaística - que “acadêmico-referencial”). Isto pois, em meus levantamentos iniciais, tive dificuldade em conseguir de facto aprofundar mais a respeito deste calendário. O material disponível na internet é escasso, e mais escassas ainda parecem ser investigações ou compêndios (sejam nativos ou acadêmicos) mais profundas sobre. Claro que isto também pode ter relação com a minha limitação (enquanto um antropólogo buscando mais e mais sobre algo que não é de sua especialidade), mas o que circula nas redes sociais e na internet, e entre diferentes grupos, ilês, iniciados no candomblé ou Culto e/ou Religião Tradicional Yoruba (“dos orixás”), “Èsìn ÒRÌSÀ Ìbílè” (etc), permitem esboçar uma “etnografia” da diversidade, mas não ajudam tanto em termos de compreensão do calendário, seu funcionamento, e menos ainda sobre as diferentes tradições.
No que se refere aos calendários Yoruba e, num geral(?), aos calendários usados em África (seja no passado e/ou hoje), parece que estamos diante de falta de documentação num geral (e especialmente na internet), o que nos leva a entender também que se tratam de calendários de tradição oral, antes de mais nada (é tão óbvio que, sim, tá escrito), mas que estão vivos - e, por outro lado, dificultam qualquer pretensão de chegar às “origens” dos diferentes calendários (especialmente se estivermos falando em termos de origem de certas estruturas compartilhadas). Tão ou mais difícil, ainda, talvez seja compreender suas eventuais adaptações ao longo do tempo e (muito provavelmente) mudanças que buscaram fixar o ano novo Yoruba em relação ao calendário gregoriano, também (da mesma maneira que a semana de 7 dias também foi “incorporada/adaptada”, e isto parece ser um senso comum neste campo ainda bastante restrito de conhecimento - para quem vem/está “de fora”).
A celebração do ano novo Yoruba hoje, em 3 de Junho, e vista “de longe”, pode ser uma tradição mais contemporânea, talvez mais intimamente associada ao culto de Ifá na Nigéria e na diáspora (talvez mais no Brasil?), e que remetem ao seu uso já combinado ao calendário gregoriano (daí a razão de ser um ano novo sempre em 3 de Junho), mas que preservam os ciclos principais no que se refere ao culto diário aos orixás. Esta é, sem dúvida, a data mais difundida, mas parte desse senso comum (por vezes) é também considerar que em Oyó (terra de Xangô) celebra-se este ano novo em agosto (sempre que vi tal referência, estava sem maiores detalhes, mas me dá a entender que seja data também fixa em relação ao calendário gregoriano). Como veremos aqui, há mesmo em Oyó outra tradição, que não só distoa disto (ano novo que não é agosto) como aparentemente não está “preso” ao calendário gregoriano. Isto nos atenta para o cuidado em compreender as tradições vivas (sejam mais antigas ou mais recentes), ou seja, mesmo dentro de Oyó não podemos falar num ano novo único - o que torna o aspecto da diversidade calendárica ainda mais interessante.
Mais conhecido como Kojoda, mas também referido como calendário de Osé (pelos quatro dias?), ou mesmo “calendário de Ifá”, o “calendário Yoruba” consiste numa “semana de quatro dias”, assim comumente referenciada (considerando a escassez mencionada). Ciclos de quatro (em alguns casos, cinco?) dias, por vezes dobrados (ou seja, dois ciclos de 4 dias podem ser considerados um “ciclo inteiro”), aparecem entre diferentes grupos Yoruba, mas também entre os Igbo (para citar apenas um exemplo). Neste primeiro momento (e devido à escassez…), é importante dizer que esses 4 dias estão associados a orixás ou divindades específicas e locais, patronos (e não necessariamente chamadas ou conhecidas como orixás ou vinculadas a eles em todos os contextos da conta de 4 dias), mas também a mercados e mesmo às ideias mais cosmogônicas (que também aparecem na Mesoamérica) de que a criação e sustentação do Mundo e do Universo tem relação também com quatro lados, quatro cantos (que podem expandir e convergir para o “centro” do Universo/Mundo).
A relação do ciclo de quatro dias com o mercado, por exemplo, demanda mais atenção (em relação aos significados e implicações locais, e potencialmente rituais [etc] dos mercados). Lembro da importância de Exú e Oyá/Yansã, no Brasil mesmo por exemplo, ao menos em suas qualidades (de orixá) enquanto dono e dona, guardião e guardiã “do mercado” (mas “quais mercados e quais dias [além de “segunda, quarta”] pertencem a Exú e a Oyá?” talvez seja[m] boa[s] pergunta[s], e aceito qualquer referência etnográfica).
Estes quatro dias são organizados em treze “meses” de 7 semanas (de quatro dias) cada, ou seja, 28 dias cada mês, totalizam portanto 364 dias - havendo uma necessidade de um dia extra (ou um dos meses serem mais longo, talvez o último ou entre os anos mesmo?), e até dois dias extras para que esse sistema (de 4x7x13 dias) seja usado de modo a seu início coincidir sempre em 3 de Junho do calendário gregoriano. Devemos considerar, me parece, não só a diversidade em termos de datas fixas, mas eventuais usos. Fato é que a conta dos quatro dias nunca é interrompida (spoiler: tem contexto em que há ruptura, sim, salvo erro grotesco na montagem de um dos calendários que já consultei), e talvez em alguns contextos os 13 meses também não(!), caso contrário sempre terão um (e eventualmente dois) dia(s) extra(s).
No campo (online) do culto de Ifá e seus odus, encontrei um relato mais antigo(?) sobre a tradição dos quatro dias. Ou, melhor dito: o que de mais denso encontrei sobre a origem dos quatro dias, graças a uma das fontes disponíveis na internet,[aqui] de uma associação nigeriana aparentemente bem internacionalizada (como não conheço o campo de fato - apenas o que se pode esboçar de longe -, não consigo situar ou distinguir muito as organizações religiosas próprias dele). Sobre isto, vejamos o que consegui achar, enquanto itans relacionados aos Odus OFUN & OGBE OUN OBARA (que são diferentes apenas em seu início):
**OFUN (Eerindiligun)
**Oludigbolu Oludigbolu Oludigbolu
Adaa funaawonaOrisa
logo ti won lo re gba ojo lo do Olodumare
&
**OGBE OUN OBARA (Ikin)
**Atanpako ni se eyin gugulupabi
Adi fa fun Orunmila Ifa n lo le ra ojo mereerin Olodumare da ile aye
Ebo wa ni ko se
------ conteúdo comum a ambos:
Ní ayé àtijó
Tí Olódùmarè ránàwonòrìsà wá sí ayé
Kòsí Kànkánnínú won tóní ojó
Niwónwá gbìmò láti mú ojó
ojó mérinpéré niOlódùmarè sì yòndafún won
ògúnniókókó dìdeláti mú ojó
ògúnbádalérú tí ayé kòsìgúnmó
Niwónbábeògúnkíòjòwó
ògúnní kíwonfúnòunní ojó òunTí gbogboòrìsà sì pinnulátifúnògúnní ojó
yìí tójé àkókò
Nígbà tí ojó kejì
àwonòrìsà túnbèrè ìjà látiféé mú ojó
wónsì tiní kí Sàngó kófiigbaotarúbo
Ni Sàngó bárúbo
Sàngó bèrè síníleàwonòkútayiléyìnìgbà tí àwonòrìsà
Yókù tibajeuntán
Nígbà tí ìjà bèrè
Tí àwonòrìsà yí sí fi èyìn le
Tí wónsí pinnulátifúnSàngó ní ojó
Tirè ní jó kejì yìí tí an pen ìjà òkúta /Jàtúta
Nígbà tí ojó kètaàwonòrìsà túnbèrè bí ìse won
ÒrìsàNlásìniOlódùmarè mángbaasoàlàlówóre
látílefúnile ayé ní òrìsà
ÒrìsàNlákòjálè kòtáàlàyí
ní gbogbo rè bádúdú
wónbèrè síní be òrìsà láti ta asoàlà yìí toríwípé
àwonkòrí nkankanTí wónsí pinnulátifúnòrìsà ní ojó kètayìí
Tí anpení ojó òsè OBA- OTA- ALA (Obatala)
Nígbà tí ojó kéèrinàwonòrìsà túnbèrè bí ìsewonláti mú ojó kanyókù
òrúnmìlà sípeàwonaworèjotíwónsìsofúnòrúnmìlà kíótójugbogbontí
enujefúnàwonòrìsà yókù
nigbogboàwonòrìsà bábèrè síní jeohun Tí wónjelódò òrúnmìlà
Tí wón si jeunyó
niwónbábèrè síní mu otí
tí ilè fisú
niwónfé látimaalolé
òrúnmìlà wápè wónpadà
wípé ojó kan tí ókù talóní
tí gbogboòrìsà dáhùnwípé léyìnìgbàtí àwonjeun tí àwonyó
làwonòtunwámojàsí ojó kan tí ókù
niwónbáfúnòrúnmìlà
lójó yìí gégé bii (OJO / AYO)
Tradução (original publicada pela associação) para o português
Odus OFUN & OGBE OUN OBARA
**Antigamente, quando Olodumare enviou os Orisas para a terra
Nenhum deles tinha o seu próprio dia
Eles decidiram brigar para escolher o seu próprio dia
**Olodumare liberou 4 dias para eles
Ogun decidiu ser o primeiro a ter um dia
Ogun virou o mundo de cabeça para baixo
os outros imploraram para trazer a paz de volta
Ogun solicitou em troca o seu próprio dia
todos Orisas decidiram dar a Ogun o primeiro dia
**No dia seguinte,
Os Orisas começaram a brigar para ter seu próprio dia
**Sango foi aconselhado a fazer oferenda com 200 pedras
Sango fez
Sango começou a enviar pedras para os outros Orisas
Depois de terminar de comer, ele começou a lutar
e Todos Orisa fugiram
eles decidiram dar Sango
O segundo dia chamado IJA Okuta / jakuta
no 3º dia todos os Orisas começaram a brigar novamente
Òrìsà NLA foi aquele que recebeu o pano branco de Olodumare
Para dar luz ao mundo
Òrìsà NLA tirou o pano do céu tudo ficou escuro
todos os Orisas imploraram a Òrìsà NLA
para colocar o pano de volta
o 3º dia foi dado a Òrìsà NLA
chamado OjoOse OBA- OTA ALA (Obatalá )
No 4º dia todos os Orisas se reúniram para escolher o dia restante
Orunmila consultou o seu awo
foi aconselhado a preparar comida para dar a todos os Orisas
todos os Orisas comeram a comida que Orunmila preparou para eles
Todos ficaram satisfeitos eles começaram a beber até escurecer,
preparavam-se para sair quando Orunmila os chamou de volta
Perguntou-lhes, quem iria possuir o dia restante, [e]
todos os Orisas responderam: ele[!] [ele mesmo, Orunmila];
depois de [n]os ter satisfeito em sua casa,
não devemos lutar mais pelo dia restante[;]
o dia foi dado a Orunmila como o (OJO / AYO) - “dia do prazer“
Isto, é claro, tem desdobramentos e variações, ao que tudo indica - e inclusive são construídos agrupamentos de orixás, mesmo que (geralmente) sob liderança desses orixás mencionados, com o último dos quatro dias sendo considerado “de todos os outros orixás” (e acho que a razão é óbvia, de todos que comeram e foram bem recebidos com Orunmila e não tinham dia, digamos). Isto é absoluto e universal? Não me parece. Vi um brasileiro, por exemplo, que falou brevemente sobre os quatro dias e colocou Exú como um dos orixás (acho que o único) com os quais TODOS os quatro dias são divididos, algo que não observei em nenhuma fonte nigeriana. Isto me faz considerar, novamente, a questão de todas as culturas e tradições, se vivas são e estão: sempre se transformam, e no caso dos calendários parece haver precedende e liberdade para que estes calendários também sejam transformados, em diferentes contextos (daquela região africana, pelo menos, da Nigéria e países vizinhos, da costa atlântica…). Isto me lembra do culto local aos ancestrais e linhagens específicas, que podem também de alguma maneira ajudar a dar forma aos calendários locais. Há aspectos pormenores em diferentes versões ou tradições do calendário que consegui coletar, porém não os abordarei neste primeiro texto. Há quem observe ciclos de 16 dias do Itadogun que correm paralelamente e sendo intercalado ,
Retornando um pouco à estrutura do calendário: esta mesma associação que publicou tais itans (lembrando, situada em Oyó, Nigéria) fornece um calendário Kojoda cuja data de ano novo parece mover-se (antecipar-se) em relação ao calendário gregoriano, coincidindo atualmente com o fim do mês de Abril. Antes de adentrar nas especificidades deste calendário, comecemos pelos quatro dias:
Dia 1 dedicado a Ògún - Ose Ògún
Dia 2 dedicado a Sàngó - Ose Sàngó /Jakuta
Dia 3 dedicado a Obàtálá - Ose Obàtálá
Dia 4 dedicado a outros orisa - Ose Ayo (joy)
Significa que todo mundo chama assim, igualzim? Não, percebi que há algumas variantes (ou que o último dia pode não ser declarado a “outros”, mais genericamente), mas pelo que vi é mais ou menos por aí mesmo. Chamar o calendário de Yoruba de “calendário de Ose” (ou até “dos rezadores de Ose”), portanto, é enfatizar a “semana de quatro dias”, cuja origem é narrada pelos itans aqui (re)publicados, já que os quatro dias são nomeados Ose (“semana”) ou, talvez num nome mais apropriado (acompanhando os itans?), Ojo Ose (“dia [da] semana”?). Há quem chame de “Ojo Ògún”, por exemplo (é mais popular em alguns dos meios que já consultei), e neste caso então já estaria enfatizando o “dia”.
É interessante observar que, assim como no caso dos mayas, se um calendário está vivo, podemos ver novas tradições emergindo (ou novas adesões a outras tradições). Este parece ser EXATAMENTE o caso da associação nigeriana em questão: ela não apenas mudou sua data de ano novo, como mudou também o nome e ordem dos meses, e isto ocorreu necessariamente entre 2019 e 2023. Ou seja, o Kojoda é uma tradição muito viva, e pode ser adaptado - um grupo pode deixar uma tradição (uma conta específica de ano novo, inclusive nomes dos “meses”) em favor de uma outra, possivelmente com respaldo de suas ancestralidades e do oráculo de Ifá (como os mayas também têm suas formas de consulta antes de tomar decisões assim). Aqui já estou, claro, especulando.
Ah, numa coisa todo mundo (spoiler: não é todo mundo) concorda: HOJE (3 de Junho de 2023) é justo um dia “Ojo Ose Ògún” ou “Ose Ojo Ògún” (independente de como se escreva, é o primeiro dia da semana, é o dia de Ògún). Pelo menos pra brasileiros que têm produzido e circulado calendários “Kojoda”, e também para esta associação nigeriana, que por razões óbvias. Com calma, começarei a conversar e me aproximar das pessoas que trabalham com o Kojoda, em suas diferentes tradições (mesmo sem chamá-lo assim, por exemplo). O dia de Ògún não é, universalmente, o primeiro (ou mesmo nem existe em todas as tradições)
O calendário em si (da associação), de anos anteriores, é cheio de erros, se visto de uma perspectiva do calendário gregoriano (às vezes há referência a que pode ser de dois ou mais anos diferentes) e pode nos confundir, mas ele marca que em 2017, o fim do último mês ocorreu em 26 de Abril, já em 2019 coincidia com 24 de Abril). As datas de ano novo são sempre jogadas para dois dias depois, na anotação de quando começa o primeiro dos treze meses, pelo menos; por outro lado, a marcação dos quatro dias e das cores associadas no calendário (e isto é mais relevante do que suas associações gregorianas, que contêm nitidamente erros), bem como das datas de “fim de mês”, são coerentes e contínuo entre o calendário de 2017 e o de 2019: neste caso, o ano novo só pode ter sido, de facto, na virada de 24 pra 25 de Abril, em 2019 - logo, em 2020 (pelo ano bissexto), se estou certo, foi para 22/23 de Abril, 21/22 de Abril em 2021, 20/21 de Abril em 2022, e finalmente 19/20 de Abril agora, em 2023.
Maaaaas não é assim que a associação celebra (pelo menos não mais, segundo o próprio calendário que publica). É interessante observar que, assim como no caso dos mayas, se um calendário está vivo, podemos ver novas tradições emergindo (ou novas adesões a outras tradições). Este parece ser EXATAMENTE o caso da associação nigeriana em questão: ela não apenas mudou sua data de ano novo, como mudou também o nome e ordem dos meses, e isto ocorreu necessariamente entre 2019 e 2023. Ou seja, o Kojoda é uma tradição muito viva, e pode ser adaptado - um grupo pode deixar uma tradição (uma conta específica de ano novo, inclusive nomes dos “meses”) em favor de uma outra, possivelmente com respaldo de suas ancestralidades e do oráculo de Ifá (como os mayas também têm suas formas de consulta antes de tomar decisões assim). Isto tudo apenas confirma o “instinto” que já trazia, em relação ao Kojoda, há várias trezenas. Tradição que é viva só é viva pois se transforma, inclusive em termos de… Contas calendáricas. Entender tais processos é bastante complexo, e não me parece que haja muito antropólogo (ou afim) se dedicando a estas transformações calendáricas, suas motivações (etc), mas elas ocorrem entre os Mayas e também entre os Yoruba HOJE, e não só no passado.
Aqui já estou, claro, especulando, mas esta associação parece ter compilado e publicado mais informação pública na internet do que virtualmente todo mundo que se interessa pelo Kojoda. Isto, mais a “mudança de tradição” no Kojoda deles, me leva a crer que trata-se de um caso em que realmente o Kojoda é um assunto mais sensível e que recebe mais atenção (em outros termos, ninguém “revisa” um calendário se ele não for importante) do que em outros lugares. Me aproximarei desta associação para entendê-la melhor, bem como a suas (recente e atual?) tradições de Kojoda, no plural.
Falando em virada, encontrei indícios (não necessariamente entre os Yoruba) de que os quatro dias também “viram” quando escurece (e não quando amanhece, ou à meia-noite), o que faz lembrar tradições mayas mortas (e algumas vivas) no modo de contar e definir quando deixa de ser um dia e começa a ser o outro, digamos. Também tem o fato de que esse fim de mês é descrito como mais importante, e até como fim e início do mês seguinte ao mesmo tempo (novamente, lembra contextos calendáricos mayas), pelo menos simbólica e ritualmente, talvez(?), por isso coloco em termos dessa passagem (tecnicamente, me parece, o ano novo teria sido em 20 de Abril de 2023, na tradição de 13 meses usada pela associação há menos de 5 anos - mas se seria, deixou de ser, antes de 2023).
Também por tudo isto, vou antecipando o fim deste texto, deixando para aprofundar no desdobramento de conceitos Yoruba, e das próprias semanas de quatro dias em meses e anos, em outro momento, exatamente pois é nesses desdobramentos que a diversidade parece ser maior… Possivelmente quando tiver mais dados etnográficos para situar as diferentes tradições, também. Então há muito o que ser estudado e compreendido, para melhor observarmos estes calendários, como eles merecem. Afinal, se hoje é dia de Ògún, tá bem… Quê fazer disto ou com isto? Como entender a importância desta alternância entre quatro dias, quatro orixás / grupo de orixás em termos mais “religiosos”, rituais, menos alienados ou superficiais, de modo a (quem sabe) acompanhar este calendário?
Ki ṓjṓ dá: “o dia pode ser previsto”, “o dia pode ser (claramente previsível)”, calendário
Duas observações pontuais:
1 - o “ano novo Yoruba”, em várias tradições diferentes, parece estar associado ao cico de colheita do Inhame. Só isso já mereceria muita atenção, bem como entender os fundamentos de eventuais tradições que destoem disso.
2 - o ano 2023 é, simbolicamente, o ano Yoruba 10.065 (talvez alguns grupos tenham diferença de 1 ano, por exemplo, não estou seguro). Assim como no caso Maya, em que podemos dizer que estamos no ano 5.139 ou 5.140), trata-se de uma “reconstrução” proposta, e à qual muitos indígenas (Mayas ou Yorubas, neste caso) acabam aderindo. É outra coisa a se entender melhor. Tanto o calendário Maya quanto o Yoruba têm origens muito na oralidade, na vida concreta, e na maior parte do tempo não foi “escrito”; tampouco parece que existia uma preocupação em manter uma “contagem de anos” parecida à “ocidental”, com um ponto de partida muito bem instituído e linear (tipo o suposto nascimento de alguém): 1 (ou zero, 1)… 5.200… 10.065.
(imagem meramente ilustrativa da interwebz - blogspot Casa Poderosa dos Filhos de Yemanjá)
Ìtúmọ̀
Aku Odun Tuntun
Feliz Ano Novo!
Eu vi palha com barro
virar concreto
- Ilê Aiyê