(escrito originalmente em 30 de maio de 2018)
A cada 30 de maio, se comemora oficialmente na Guatemala o “Día Nacional del Popol Vuh”. Bem, pelo menos é o que se diz popularmente.
O Popol Wuj é, sem dúvida, o principal documento indígena produzido no período pós-invasão (“colonial”), tendo sido escrito ainda no século 16, em língua Maya K’iche’ e já em alfabeto latino. Não por acaso, é considerado um livro sagrado e popularmente chamado de “Bíblia Maya”.
Em geral, eu lembro do Popol Wuj em dias específicos do calendário maya, em lugar do calendário gregoriano (por exemplo, no dia Jun Junajpu, como foi recentemente). Calhou de, justo hoje (30/05/2018), ser também o dia Jun Kame (ou “Um Morte”), dia do principal dos senhores de Xibalba (o que o torna também principal antagonista dos gêmeos-heróis no Popol Wuj, ao lado de Wuqub’ - “Sete” - Kame).
Mas, hoje, meu texto é motivado pelo “Día Nacional del Popol Vuh” (que atualmente deve ser escrito sempre “Popol Wuj”, lembrem amigos) e da questão, da qual venho tratado, da incorporação de datas comemorativas ao calendário oficial dos Estados nacionais - neste caso, da Guatemala. Como sabemos, a criação de datas comemorativas oficiais se dá em contextos políticos específicos, os quais são no máximo parcialmente mapeáveis a partir da leitura dos projetos de lei ou acordos específicos e dos indícios ali contidos.
Pois bem… Neste caso, a coisa parece um pouco mais complicada. Não consegui, durante uma busca um pouco mais aprofundada ao longo do dia, achar uma referência a uma lei ou decreto que estabeleça o “Dia do Popol Vuh” em 30 de maio. Neste sentido, tampouco pude satisfazer uma de minhas curiosidades: a razão pela qual este dia específico (30 de maio) foi vinculado ao Popol Wuj. As justificativas encontradas através da imprensa ou de fontes oficiais são mais generalistas, do tipo “preservar, fomentar” (e por aí vai)… Enfim, tudo o que se espera de uma lei vinculada a um patrimônio que deve ser lembrado e, nesse caso ainda mais, lido/estudado (a começar pelas escolas e museus, claro). Em resumo, não consegui determinar se 30 de maio tem alguma relação plausível com o Popol Wuj, ou se seria alguma data aleatória, ou escolhida mais em função do Estado e sua agenda.
O que consegui reunir a respeito, com segurança (posto que repetido em diversas fontes), é que esta data comemorativa teria sido instituída (pelo governo?) em 30 de maio de 1972. Segundo fonte oficial guatemalteca:
“El Popol Vuh fue declarado Libro Nacional de Guatemala el 30 de mayo de 1,972 para preservar el valor histórico, cultural y social de la obra. El 27 de agosto de 2012, el Ministerio de Cultura y Deportes lo declaró Patrimonio Cultural Intangible de la Nación, según acuerdo ministerial 826-2012”
Busquei possíveis decretos/leis do começo da década de 70 por meios oficiais (que cobrem este período), sem sucesso. Tampouco, ao que parece, os “acordos ministeriais” estão todos disponíveis livremente na internet. Teoricamente, se esta fosse uma efeméride criada por iniciativa do poder legislativo, eu teria conseguido mapear mais facilmente. A única hipótese que resta, então, é que a origem da instituição da data oficial é o poder executivo, e de fato encontrei menção de que teria sido via um “acuerdo gubernativo” (em proximidade ao “ministério da cultura”, talvez?).
Pues… Bem, o governo à época - em plena guerra civil/ditadura - era de Arana Osorio, um militar anticomunista que “abriu caminho” para os piores anos de associação mais íntima entre militares, extrema-direita e anticomunistas na Guatemala. Durante este governo, por exemplo, ocorreu o massacre de Sansirisay, contra população indígena Maya Poqomam, e que paira como uma das máculas à trajetória sangrenta do então chefe do Estado Maior das Forças Armadas (e posteriormente, presidente da Guatemala), Ríos Montt.
Diante da falta de maiores detalhes sobre a instituição desta data comemorativa, pairam mais dúvidas do que certezas. Por mais que esta data tenha sido incorporada por uns tantos guatemaltecos, e tenha motivado a realização de eventos de divulgação do Popol Wuj, e levado mais pessoas a conhecê-lo e lê-lo, por outro lado paira a dúvida: teria sido isto obra de um governo que celebrava (e se apropriava) (d)os mayas de “ontem” enquanto desdenhava e massacrava os mayas de “hoje”? E, sendo isto verdade ou não, será que esta foi uma conquista também de intelectuais indígenas, que já na década de 70 começavam a ter mais voz e influência no debate nacional? Que agentes indígenas - se existiram - estiveram envolvidos no processo de estabelecimento desta data, e teriam eles ajudado a escolher (com justificativa) o dia 30 de maio?
Sendo o Popol Wuj tão importante para os mayas e a afirmação de sua identidade e espiritualidade contemporaneamente, torna-se por tabela também importante para o Estado guatemalteco e para a afirmação de uma identidade nacional guatemalteca que reivindica o passado maya de seu território. Por isso, o caso do “Día Nacional del Popol Vuh” me interessou ainda mais: caso não haja uma boa razão para o 30 de maio, prefiro lembrar do Popol Wuj várias vezes ao ano, nos dias dos heróis míticos e históricos de acordo com o calendário maya.
Minhas conclusões parciais são de que possivelmente o “Día Nacional del Popol Vuh” existe em decorrência da declaração do Popol Wuj enquanto “livro nacional da Guatemala”. Neste caso, e diante do material levantado, é plausível cogitar que não haja um acordo ou decreto oficial que mencione literalmente o “Día Nacional del Popol Vuh”, mas sim apenas a declaração como “livro nacional”, declaração esta que passou a ser celebrada anualmente (e que, neste caso, faria com que 30 de maio fosse fundamentalmente uma data que orbita a história do Estado). Pesa a meu favor, nesta interpretação, o fato de que as minhas fontes oficiais não utilizam em nenhum momento o termo “Día Nacional del Popol Vuh”.
(na imagem, divulgação oficial do “Día Nacional del Popol Vuh”, veiculada pelo Ministerio de Cultura y Deportes em 2016, e contendo a contradição da escrita: ao mesmo tempo “Popol Wuj”, forma de escrita atual, e “Popol Vuh”, a escrita ao modo colonial; destaco também os dizeres “el libro de todos en Guatemala”).
Obs.: e você, já leu o Popol Wuj? hehehe
Em resumo, cinco anos depois não lembro de ter visto mais pessoas questionando; mããããs segue muito mais pertinente lembrar do Popol Wuj em dias menos arbitrários, isto é, nos dias mayas (e não gregorianos) que são mencionados e que dão nome a diferentes personagens que constam do documento… Como 1 e 7 Junajpu, 1 e 7 Kame, 1 B’atz’ / 1 Chowen, etc.
Links:
http://prueba.mcd.gob.gt/popol-vuh-el-libro-de-todos-los-guatemaltecos/
http://prueba.mcd.gob.gt/se-conmemora-el-dia-del-libro-sagrado-de-los-mayas/
http://www.infopublica.gt/2016/06/02/popol-vuh-libro-nacional-de-guatemala-y-patrimonio-cultural-tangible-de-la-nacion/