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Além do Halloween: os calendáriul colonizado de todos nozes

Postado originalmente no Facebook (10 Tz’i’, 31/10/2016), com o título “ALÉM DO HALLOWEEN E OS CALENDÁRIUL COLONIZADO DE TODO NOZES” (texto ligeiramente revisado e atualizado)

Todo mês de outubro é a mesma coisa:

Celebrar ou não o halloween torna-se, para muitos, índice de quem é mais ou menos “colonizado”. Eu mesmo já defendi o boicote ao halloween, como uma forma de valorizar a cultura nacionales (ou de negar a “estadunidense”), digamos. Hoje, eu prefiro me dedicar a uma análise mais abrangente. Se for pra falarmos em “colonização”, o halloween é ponta pequena e frágil de um grande iceberg: um calendário de origem europeia, católica, apostólica, romana, e que foi imposto na “América” desde o século 16 (que, aliás, é “16” também em função dele).

Quando viemos ao mundo, já havia portanto um longo processo de institucionalização do calendário europeu, iniciado ainda quando o calendário juliano era o calendário hegemônico na Europa ocidental. A maior parte deste processo se deu já após a transição do calendário juliano para o gregoriano (iniciado em 1582). Esses calendários serviram como base para os calendários oficiais das “colônias”, e depois dos Estados nacionales, mas também implica (obviamente) na incorporação sistemática de eventos históricos, efemérides e datas religiosas estrangeiras (via de regra cristãs, neste processo).

Não por acaso, no Brasil a maioria celebra o natal de alguma maneira, e até hoje persiste sua moda de inverno no nosso verão. E isto ilustra como datas comemorativas não são apenas datas, e podem implicar na incorporação de culturas e estéticas que, por vezes, podem resultar em situações como a do papai noel carioca com 50+ de sensação térmica dantro daquela roupa toda, em pleno verão.

Não há nada de “originalmente brasileiro” no calendário que usamos, nem no natal e outras festas e feriados que, sem dúvida, são “tradições dos mortos” naturalizadas, incorporadas e toleradas - e o fator tempo conta, para determinar a “legitimidade” de uma data incorporada, em detrimento a outra. Ao mesmo tempo, é óbvio também que as datas que convêm ou que são “legítimas” são selecionadas - sendo “brasileiras” ou não.

A nossa relação com o tempo já foi “colonizada” há muito, mas hoje um fenômeno interessantíssimo é o de que os calendários oficiales são fatiados pelo poder legislativo, a partir de projetos de lei (PLs) que buscam oficializar datas comemorativas para qualquer coisa, potencialmente favorecendo determinados grupos a nível municipal, estadual e federal. Os projetos “anti-halloween” não fogem necessariamente disto.

Para concluir: dei uma olhada em alguns projetos de lei que propuseram o “dia do Saci”, a ser celebrado no mesmo 31 de outubro “do halloween”. As únicas justificativas que eu encontrei neles, para que se estabelecesse o dia do Saci no 31 de outubro, são as de criar uma alternativa ao halloween. Ou seja, não há nada sobre este dia do ano ser realmente significativo para o Saci, ou para a cultura brasileira: nenhuma justificativa “originalmente brasileira”. Não combato o dia do Saci sistematicamente, mas acho que poderia ser mais do que alternativa ao halloween e afirmação de “brasilidade” a partir da negação do halloween como influência “estadunidense”. Não há como controlar os significados que indivíduos e grupos vão atribuir a cada dia, mas ainda é possível reivindicar sua fatia dos calendários oficiais, mesmo se for baseado apenas numa crítica ao halloween.

O ímpeto seletivo em “de(s)colonizar” o calendário parece mais preocupado em impedir o avanço (e eventual institucionalização) do halloween no Brasil, do que em questionar a incorporação aos calendários oficiales de efemérides e feriados religiosos que estão “dados”. Considerando tudo o que observei nos textos de projetos de lei, e a opinião de outros pares (acadêmicos ou não) que também fizeram suas próprias pesquisas e análises mais recentemente (em 2024), não resta dúvida: infelizmente, o dia do Saci é uma proposta reacionária.

E não importa quem venha a encampar e legitimar esta efeméride oficial brasileira. Hoje (8 anos depois do texto original) é possível ver muito mais pessoas envolvidas com a efeméride, inclusive muitas pessoas que se identificam como de(s)coloniais, antiimperialistas e afins. É claro que é possível relativizar e ressignificar, mas é antes de mais nada um exemplo de como incorporamos e naturalizamos basicamente todas as datas comemorativas que “nos aparecem”. Ou seja, não as questionamos, afinal que mal tem? A despeito de que comunistas sejam simpáticos ao dia do Saci, o fato de ele ser celebrado em 31 de outubro se deve exclusivamente a um projeto reacionário (e não revolucionário).

Vemos esse tipo de coisa como inofensiva, mas neste caso concreto ficam muitas conclusões (estas são algumas):

  1. O “dia do Saci” é, em sua origem, um proposta ou projeto reacionário, isto é, cuja existência e motivação se dá exclusivamente “para combater” o halloween (em reação a ele), e o que ele representa para certos setores “nacionalistas” (com aspas, mesmo).
  2. Colocar o Saci para ser celebrado no mesmo dia do halloween, ou seja, em 31 de outubro de cada ano, sem que tal dia seja historicamente relevante para o Saci (ou para a “cultura nacional” genericamente), além de reforçar o reacionarismo da proposta, pode ter (pra mim, tem) o efeito oposto ao de “valorizar a cultura nacional”. A cultura nacional não é valorizada em seus próprios termos, mas apenas retoricamente, já que a motivação e objetivo principais são o “combate a uma cultura estrangeira”. Só por isso, o “dia do Saci” é celebrado todo 31 de outubro.
  3. Ao ser no mínimmo encampado pela esquerda institucional brasileira, há mais de vinte anos, o projeto de lei a nível nacional é respaldado por nomes importantes dos principais partidos de esquerda àquela altura, PT e PCdoB. Isto ajuda a explicar um apoio mais “naturalmente” dado, por parte da esquerda, de pessoa de(s)coloniais, antiimperialistas e mesmo comunistas. E ajuda, também, a entender que, como a cada ano a celebração do Saci avança mais (e, via de regra, avança com muita simpatia dentro desses campos “progressistas” e “revolucionários” mais abrangentes), torna-se ainda mais difícil de publicizar a crítica, ou seja, de dizer que o dia do Saci É reacionário. Entretanto, qualquer marxista, anarquista ou pessoa racional é capaz de pesquisar e analisar por si. Pode parecer petulância, mas é provocação e, mais do que isso, é sobre análise material, concreta. Não é possível concluir outra coisa, ao analisar os projetos de lei do dia do Saci: trata-se claramente de uma proposta “culturalista” reacionária. Um projeto “culturalista” que, se não é incapaz de encontrar lastro em si mesmo, no mínimo crê que é excelente estratégia, “reagir ao halloween” de maneira esvaziada (e, também por isso, reacionária).
  4. “Halloween ou Saci?” - perguntam-se milhões, na tal época do ano. Ao se apropriarem do Saci, literalmente como reação ao halloween, os idealizadores criam falsas questões, ou novas questões que atualizam refúgios essencialistas e de valorização “da nossa cultura pela nossa cultura” (neste caso, induzindo a um etnocentrismo órfão de efemérides com lastro próprio). Primeiro, pois os dias são diversos, polissêmicos (quando o dia do Saci existe em função do halloween e para suplantá-lo, aposta-se no oposto disso). Segundo, pois a estratégia de combate genérico às culturas estrangeiras como modo de “valorizar a cultura nacional” (e o dia do Saci É genérico) é anacrônica ou (se preferir) no mínimo ineficiente, já que YouTube, Spotify, Netflix, a própria TV tradicional e muitos outros meios de publicação e circulação de diversas culturas estrangeiras estão ao alcance de basicamente qualquer brasileiro que tem um celular (ou TV, ou anda na rua, etc).
  5. Considerando as falsas questões e dicotomias (“halloween ou Saci?”), e a estratégia anacrônica em um mundo globalizado… A incorporação mais sistemática do halloween no Brasil, ao que tudo indica, coincide com o avanço da internet e o aprofundamento do processo de globalização, que também está atrelado a esse avanço. Estes fluxos (a ida de coisas materiais e imateriais do Brasil pra outros lugares, e de outros lugares pra cá) são virtualmente incontroláveis, e se algo parece nocivo é preciso combater de maneira muito mais bem embasada do que “temos de ser brasileiros” (uma justificativa que, se for o carro-chefe de um argumento, é reacionária), considerando ainda que Saci nunca teve nada a ver com o dia 31 de outubro. Quando a justificativa para o dia do Saci coincidir com o halloween é esvaziada, as falsas questões derivadas disto criam tensionamentos mais concretos e que se desdobram, a meu ver tensionamentos desnecessários… Especialmente pois são mal embasados, já que o halloween não “roubou” nada do Saci: ele é apenas visto como ameaça à “identidade nacional” pelos reacionários.

PL 2479/2003 - clique aqui
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Além do Halloween: os calendáriul colonizado de todos nozes
https://oxlajujqanil.net/posts/alemhalloween/
Autor
Oxlajuj Q’anil
Publicado em
6/11/2024