Sobre mayas e cacau, pt. 2 (2024): com as bênçãos de IxKakaw

Sobre mayas e cacau, pt. 2 (2024): com as bênçãos de IxKakaw

* Por Thiago Cavalcanti (@antropolouco no instagram)

Este texto nasceu pela necessidade de falar sobre IxKakaw, no contexto das críticas às cerimônias com cacau[NOTA 0] em sentido “sagrado”, “cerimonial” ou “medicinal”. Foi inicialmente motivado por um vídeo, mas no fim das contas este texto dialoga com os discursos de várias pessoas no campo, entre as pessoas que criticam e são criticadas (mesmo que indiretamente, ou que se sentiram criticadas) no vídeo.

Nesta semana que passou (já no ritmo cíclico de segundou laroyê), voltamos no Brasil (ou pelo menos em algumas redes instagrâmicas) a um tema (literalmente) quente: as cerimônias com cacau maya (ou as cerimônias mayas de/com cacau) e suas controvérsias. Um vídeo foi postado por alguns perfis no instagram (aqui e aqui), tratando, de maneira informal, de questões efervescentes e que não haviam sido expostas, como a forte influência de um geólogo estadunidense na forma e invenção (criação ou cocriação) dessas cerimônias, assim como em relação à deusa maya IxKakaw (ou IxCacao em grafia colonial). Em virtude de algumas imprecisões nas críticas, numa live que não foi preparada para isso, e também imprecisões nas respostas a essas críticas, resolvi escrever este texto, não só para ajudar a contextualizar as pessoas interessadas em geral (que talvez não tenham tanto aprofundamento em aspectos mayas), mas também para complementar o texto que escrevi no ano passado (leia aqui).

Antes de continuar, quero destacar que não é minha intenção aqui desmerecer a subjetividade, sensibilidade, mediunidade ou qualquer (i)dade de quem seja. Como antropoLOKO (desde siempre), ando mais a assumir posições que fazer mediações, muitas vezes; mas muito mais disposto a entender e lidar com as diferenças, hoje, do que em 2006. Lembro-me de quando as pessoas acreditavam (há quem ainda acredite) que o calendário ou (hoje) “sincronário” da paz era maya, e como (eu) dizer a verdade (que calendário maya é ooooutra coisa) doía para elas, que tomavam como um ataque pessoal, pois lidávamos com crenças bastante profundas e particularmente significativas para as pessoas. Consigo ao menos localizar que, neste caso, aparentemente todas as pessoas mais calorosamente envolvidas na treta concordam comigo quanto a isso, e que é importante falar sobre os mayas e seus calendários (mas também cacau, também documentos históricos, também linguística etc etc), sendo o Brasil um país ainda bastante sujeito à desinformação e mercantilização de saberes e espiritualidades, como é o caso “dos kins”, como dizem por aí. Neste sentido, já estou mais feliz (e menos solitário) que em 2006, por exemplo. Este texto é uma contextualização do Popol Wuj, disparada pelo vídeo mencionado, mas também um relato sobre o que eu já vinha observando, junto das questões que se apresentam concretamente nesta controvérsia (mesmo que não permitam chegar a muitas conclusões). Como é um relato incipiente sobre o campo, ainda que eu não esconda as fontes prefiro manter uma escrita impessoal (no sentido de não citar diretamente as pessoas envolvidas).

No ano passado, segundo meus radares pela primeira vez, estes debates (sobre cerimônias mayas de cacau) começaram a aparecer de maneira mais contundente - agora, então, passamos por uma segunda “onda” de críticas. Em 2023, um casal de mayas veio ao Brasil, promovendo muitas destas “cerimônias mayas de cacau” em algumas das principais capitais/regiões metropolitanas do país. Na mesma época, eu estava com a segunda turma do meu curso sobre mayas e seus calendários, e felizmente (para o loko) uma das pessoas que estava comigo era não só minha aluna, como aluna também deste casal maya. Por isto, há talvez menos de um ano (e antes da vinda do casal ao Brasil) comecei a me situar mais neste novo (e emergente) campo não só do cacau, mas especificamente do “cacau maya”.

Esta vinda ao Brasil, como pude constatar à época, é, antes de mais nada, parte de um movimento mais amplo não só de “tours” internacionas em que se cobra caro por cerimônias, mas mesmo de formação de estrangeiros para a realização e condução de tais cerimônias - formação esta que se dá, inclusive, online. Além disto, e no contexto brasileiro, posso afirmar (a partir de uma ~etnografia das redes) que a visita do casal maya se deu em associação a redes new age,[NOTA 1] inclusive com gente que trabalha com o tal sincronário (o eterno “falso calendário maya”, pra quem não sabe), e que foi diretamente beneficiada. Isto me fez questionar e criticar ainda mais a vinda do casal, já que se associaram diretamente a agente(s) que notoriamente contribuem para a desinformação sobre mayas e seus calendários no Brasil.

Para tornar isto mais interessante, a pessoa que foi minha aluna já mencionava, desde o começo, a presença no campo de um gringo, que hoje sabemos tratar-se de Keith Wilson (falecido em 14 de Janeiro, menos de dois meses antes da escrita e publicação deste texto).[NOTA 2] Não uma presença qualquer, mas de alguém que, no mínimo, influenciou diretamente este casal de sacerdotes mayas. Pois bem, o vídeo (o corte) que circulou esta semana fala principalmente sobre essa pessoa, bem como sobre IxKakaw (“deusa [maya] do cacau”), denunciando Wilson como criador dessas cerimônias com cacau e, mais do que isso, como canalizador/inventor de IxKakaw. Conversei com pessoas que estão ou estiveram, de alguma maneira, neste campo do cacau, e que pensam ser importante falar mais sobre essa figura estrangeira e “do cacau”, ainda que a crítica do vídeo tenha sido equivocada em alguma parte. O vídeo é, também, uma crítica às ([auto]intituladas ou não) “guardiãs” do cacau, e a alunas e simpatizantes do Keith em particular, que pelo menos há alguns anos chegam a cobrar 3 mil reais para iniciar novas pessoas para a condução dessas cerimônias.

Como uma pessoa crítica ao capitalismo e às explorações de um modo geral, isto me parece muito alarmante - e mais um exemplo da lucratividade que a atuação em campos “sensíveis” e new age pode trazer. Conforme não deixei dúvida no ano passado (e aqui novamente), não sou um entusiasta da “moda do cacau” e de como muitas pessoas que trabalham neste campo andam se apropriando, de diferentes maneiras, de aspectos das culturas mayas (inclusive seus calendários). Porém, antes de falarmos mais sobre o campo do cacau é necessário observar também as imprecisões das críticas que se apresentaram agora, no que se refere aos mayas. É preciso reconhecer que IxKakaw, diferente do que se sugeriu, sim existe entre os mayas, e seu nome é citado em um contexto particularmente importante, no Popol Wuj (Popol Vuh na grafia colonial, hoje considerado O livro “sagrado” maya, não só dos Mayas K’iche’ mas num âmbito pan-maya, ou seja, por muitos mayas das diferentes etnias).

IxKakaw é mencionada em um contexto particularmente relevante, que merece ser relatado num corte um pouco mais extenso: os caçadores Jun Junajpu e Wuqub’ Junajpu (ambos nomes calendáricos, respectivamente “1-Caçador e “7-Caçador”) são mortos por Jun Kame e Wuqub’ Kame (“1-Morte” e “7-Morte”, também nomes calendáricos), senhores de Xibalba (“Lugar do Medo”, inframundo, mundo dos mortos). Em Xibalba, a cabeça de Jun Junajpu[NOTA 3] é pendurada em uma árvore de calabaça e a árvore, que nunca havia dado frutos, passa a dar, com a própria cabeça tomando forma idêntica à das calabaças. IxKik’ (Mulher, Senhora ou “Moça de Sangue”), ao saber que a árvore deu frutos, fica bastante curiosa e vai até as calabaças, a despeito da orientação/ordem em contrário pelos governantes e mais velhos de Xibalba.

Já sob a árvore, IxKik’ indaga-se, preocupada em ser descoberta caso tome para si um dos frutos, até então desconhecidos para ela. É então que a cabeça de Jun Junajpu responde (“o que você deseja? é só um crânio/uma caveira colocado[a] no tronco da árvore”) e, quando a menina insiste em desejar aquele fruto, Jun Junajpu então pede para que ela estenda sua mão em frente à cabeça, o que ela faz. Neste momento, a cabeça cospe sua saliva sobre a mão de IxKik’ que, ao olhá-la, já não vê cuspe algum. Assim, segundo o Popol Wuj, é que IxKik’ fica grávida dos gêmeos Junajpu e (I)XBalamke(j) (“Caçador” e “Jaguar-Veado”, que posteriormente vingariam a morte de seus pais, vencendo os senhores de Xibalba e se tornando o Sol e a Lua).

Após seis luas, IxKik’ tem sua gravidez percebida e descoberta pelo pai. Ela, virgem, nega que esteja grávida - mas está. Sua negação é vista como confirmação da sua “fornicação”, e então o pai ordena (após prévia orientação de Jun Kame e Wuqub’ Kame) às corujas, guardiãs e aves mensageiras de Xibalba, que a levem e sacrifiquem, trazendo de volta seu coração como prova da morte. IxKik’ suplica às corujas por sua vida, revelando a origem de sua gravidez - e as corujas, assim, poupam sua vida (já que só pessoas que verdadeiramente fornicaram deveriam ser sacrificadas) e, na tigela que deveria trazer o coração da moça, colocam seiva vermelha (da árvore de cróton) como simulacro de sangue. A seiva congela e toma forma mais arredondada ou ovulada, similar à de um coração, e é isso que as corujas levam de volta, enganando os senhores de Xibalba e depois retornando para guiar IxKik’ até a passagem para a superfície terrestre (já que Xibalba é o inframundo).

IxKik’ vai até Ixmukane (grande abuela da própria criação humana, para os mayas), mãe de Jun Junajpu e Wuqub’ Junajpu e avó dos filhos que traz em seu ventre, apresentando-se como sua nora, mas é recebida com bastante desconfiança. Ixmukane, sabedora de que não havia muito em sua milpa (seu milharal), pede uma prova a IxKik’: que faça a colheita do milho e encha uma rede grande para alimentar seus netos mais velhos. Ao chegar no milharal de Jun B’atz’ e Jun Chowen (netos mais velhos de Ixmukane e filhos mais velhos de Jun Junajpu, e cujos nomes calendáricos significam, ambos, “1-Macaco”), IxKik’ se depara com não mais que UM “punhado” de plantas de milho (4 ou 5),[NOTA 4] insuficiente para encher uma rede como pediu a avó Ixmukane. É diante desta dificuldade que IxKik’, então, invoca nawales ou espíritos relacionados à terra para que a ajudem (Popol Wuj, linhas 2618-2627):

**_Venham, apareçam,
Venham, levantem

IxToj,
IxQ’anil,
IxKakaw e
Ixtziya

Vocês, guardiãs da comida de Jun B’atz’ e
Jun Chowen_ […]**

IxKik’ então pegou cabelos e flor de milho, arrancando-os e jogando-os para cima, e assim as espigas apareceram e se multiplicaram, sobrecarregando a rede grande que havia de encher. Ixmukane, incrédula, teve de ir até o milharal, receosa de que a menina tivesse acabado com tudo. Ao constatar que o milharal seguia igual (com UM “punhado” de milho), reconheceu isto como um sinal, um prodígio dos seus netos, ainda no ventre de IxKik’. E assim a avó aceitou IxKik’ como sua nora e mãe de seus netos legítimos, ainda que para eles só sobrassem os restos das refeições dos netos mais velhos…

Ainda que se trate de um trecho pontual, a menção a IxKakaw se dá num momento importante, mesmo crucial e determinante para o que se passa depois (o nascimento e crescimento dos filhos, eles suplantando seus irmãos mais velhos e depois descendo a Xibalba para vingar a morte dos pais, se tornando Sol e Lua - estabelecendo a condição para a vida humana como a conhecemos). IxToj, IxQ’anil, IxKakaw e Ixtziya são os (as) nawales invocados(as) por IxKik’, por se tratarem de espíritos que guardavam a terra e o milharal de Jun B’atz’ e Jun Chowen. Neste sentido, IxKik’ está ao mesmo tempo pedindo permissão a essas forças, que são “donas” daquela terra e que ela reconhece como sendo de Jun B’atz’ e Jun Chowen, e ajuda, para que os frutos do milho possam abundar, mesmo em meio a um milharal escasso.

Luis Enrique Sam Colop, intelectual Maya K’iche’ que foi um dos tradutores do Popol Wuj,[NOTA 5] atenta para a relação entre os nomes dessas divindades com o calendário: Toj (“Pagamento”, “Oferenda”) e Q’anil (“Amarelo” ou “Maduro”, referência ao milho) são dois dos 20 dias do Cholq’ij, o calendário ritual maya, mas aparecem de maneira invertida (isto é, no calendário Q’anil vem imediatamente antes, e não depois, de Toj). Considerando que IX- é um prefixo maya para denotar “mulher”, “feminino” (“senhora”…), IxToj e IxQ’anil poderiam ser vistas como “mulher [do dia] Toj” ou Q’anil. Segundo ele, IxKakaw (que literalmente poderia ser traduzido como “mulher [do] cacau”) aparece logo após IxQ’anil como uma referência direta ao dia Toj, e ao cacau como moeda (presente entre os mayas antigos) e oferenda (presente ainda hoje), significados que são afins ou análogos a Toj. Ixtziya também é eventualmente relacionado ao dia Tz’i’ (justo o dia seguinte a Q’anil e Toj), e apresentada por Sam Colop como divindade (ou mulher, ou senhora, pelo prefiro IX-) da comida de milho, fazendo referência à comida já cozida.

Terminada a parte mais “PopolWujeska”, observo que, diferente do que tem sido apontado, em diferentes lados da controvérsia atual, é possível (como faz Sam Colop, mas também outros na academia), sim, tratar esses quatro espíritos femininos como divindades, deusas. IxKik’ recorre às divindades da terra, da fartura, da abundância, e só assim consegue provar para Ixmukane que traz em seu ventre os seus legítimos netos (a “magia” que acontece, aqui, é derivada da magia dos próprios bebês também, ainda que antes do seu nascimento, e por isso Ixmukane reconhece seu sinal como confirmação). Como a crítica (do vídeo que desencadeou esta segunda onda de críticas) foi imprecisa, falhando em observar a presença de IxKakaw nos documentos mayas e tratando-a como mera invenção do Sr. Keith, houve uma reação por parte de alunas brasileiras dele, entusiastas e apoiadoras, o que incluiu uma live (que pode ser vista aqui), bem como um post específico (no instagram, aqui) para contextualizar historicamente “IxCacao” no Popol Wuj. A live evitou tratar o problema e as contradições/tretas de maneira mais direta ou concreta, assim como o vídeo que motivou essas respostas se limita a nomear o Keith Wilson. O post foi uma oportunidade bem aproveitada e uma resposta bem dada, em que talvez a herdeira mais proeminente de Keith no Brasil demonstrou (para seu público e pessoas críticas) mais preparo e estudo do que talvez esperassem dela.

Gostaria, apenas, de fazer duas colocações sobre a live e três, quanto ao post. Primeiro, na live as mulheres (que trabalham com cacau e reverenciam o legado de Keith) concordaram com algo que, segundo uma delas, o próprio Keith dizia: “tanto faz o nome, como chamam, etc, etc”. Oras, para concordar com isso eu precisaria estar louco (sí, soy, pero no mucho). Seria o mesmo que dizer que o tal sincronário pode chamar a si mesmo de “Tzolkin”, quando obviamente não é o caso, já que usar esta palavra implica em induzir ao engano e ao erro, que as pessoas pensem que o sincronário é um calendário maya - afinal, Tzolkin É um calendário maya! Então faz diferença como chama, e se chama de IxKakaw está remetendo, mais uma vez obviamente, aos mayas. Ainda sobre a live (mas não sobre mayas), o momento mais alarmante pra mim foi quando citou-se algo de fonte “tolteca”: gente, desconfiem de qualquer pessoa que se diga “tolteca” ou os referencie hoje em dia, já que esta é uma das faces do movimento new age “à mexicana” (há quem se diga tolteca e inclusive misture com tradições mayas, mas “toltecas” contemporâneos ou citados contemporaneamente são cilada, bino e não devem ser confundidos com a cultura tolteca histórica e arqueologicamente falando, nem tomados como seus representantes). A respeito do post, as “correções” ou observações que faço são as seguintes: (1) a concepção dos gêmeos no ventre de IxKik’ se deu, claramente, após a morte do pai, Jun Junajpu, e não antes, e (2) o documento não permite afirmar que as divindades femininas ensinaram IxKik’ a plantar e colher no momento da invocação, nem que assim ela conseguiu o milho necessário, mas sim que elas proveram a fartura de que IxKik’ precisava para provar não ser uma impostora diante da avó de seus filhos e grande avó da humanidade. Finalmente, (3) considerando que Q’anil é “amarelo”, (milho) “maduro”, não vejo nenhum sentido em dizer que IxQ’anil é “face jovem da deusa”, por extensão questiono muito essa projeção das três faces (do que seria uma “deusa tríplice”) em IxQ’anil, IxKakaw e IxTziya: em segundo lugar, pois IxToj também é mencionada (logo, nominalmente são quatro as invocadas, e não três); e, em terceiro lugar, se quiséssemos fazer qualquer projeção ou analogia parecida, deveríamos considerar que IxKik’ e Ixmukane são muito mais centrais no Popol Wuj: IxKik’, ela própria, é referenciada como “donzela” em traduções (logo, seria mais lógico atribuir a ela o lugar que atribuiu-se a IxQ’anil) e, ao mesmo tempo, é ela a grande mãe em cena (e não IxKakaw!), enquanto Ixmukane seria, sem sombra de dúvidas, a grande deusa-avó (ou anciã) que realmente tem destaque no Popol Wuj e na própria criação da humanidade.

É digno lembrar, ainda, que por mais que o Popol Wuj tenha sido escrito nas primeiras décadas após a invasão, trata-se de um relato original Maya K’iche’, que traz mitos (como o dos gêmeos) que são notoriamente de antes da invasão. Um exemplo de arte maya clássica[NOTA 6] que dialoga diretamente com o mito de concepção da “Mulher de Sangue” é este vaso, proveniente de Nebaj, Guatemala:


Figura 1. Aqui, podemos ver a cabeça do equivalente do equivalente maya clássico a Jun Junajpu, pendurada em uma árvore.
De maneira muito interessante para o contexto do qual se trata, nesta versão clássica do mito a cabeça aparece em um cacaueiro, em lugar de uma cabaceira.
Fonte: Maya Vase.

Não há qualquer dúvida sobre a importância do cacau ao longo da história maya e mesoamericana, já que, como mencionado, serviu até como moeda, o que ilustra a potência da circulação do cacau e sua importância para o comércio (e aqui devemos lembrar também de uma divindade maya antiga, Ek Chuaj/”Deus M”, relacionada ao comércio, à guerra e ao cacau). Não faltam relatos que envolvem o kakaw, entre os mayas clássicos, e ainda poderíamos (deveríamos) aprofundar sobre a relação entre milho e cacau (para os mayas, como no Popol Wuj, os seres humanos foram feitos de milho) para ressaltar essa importância, bem como entre cacau e macacos (alô, Jun B’atz’ e Jun Chowen), por exemplo. Isto deixarei pras próximas, já que há bastante tratado por agora, mas é mais uma coisa que pode ajudar a situar a razão pela qual IxKakaw é invocada também num milharal, e assim como as demais entidades invocadas é portanto intimamente relacionada ao milho, é uma provedora também do milho.

Não só há um espírito ou uma divindade diretamente relacionada ao cacau, como aparece no Popol Wuj, mas também há artes, peças cerâmicas (inclusive vasos) mayas que retratam uma “mulher do cacau” ou uma “deusa do cacau” (sendo assim referidos por arqueólogos e em museus dedicados à arte maya). Aqui, podemos ver talvez o mais famoso deles:


Figura 2. Cerâmica da “deusa do cacau” - Costa Sul, Guatemala, período clássico tardio (600-900EC).
Fonte: livreto “KAKAW”.

Estes vasos são provenientes da costa sul guatemalteca - justo uma região cacaueira, dentro da vasta zona que hoje chamamos de maya. Por razões óbvias (e independente dos mayas), o cacau (qualquer coisa) é mais cultuado(a) onde é cultivado(a). Diferente do que sugerem, no sentido de uma divindade do cacau ser “menor” ou “menos importante” que outras (afinal, não está presente em listas populares de deuses mayas, por exemplo, mas o cacau é recorrente nos textos mayas), penso que situar o cacau no mundo maya passa por compreender que ele não abundava em todas as terras mayas, e que um culto mais elaborado ao cacau e à sua divindade pode ter sido mais localizado (na costa sul, pra começar), mas isto não significa menos importante. Tampouco devemos restringir nossa compreensão sobre o cacau entre os mayas a uma “deusa do cacau” ou especificamente a IxKakaw (como no exemplo citado, Ek Chuaj é uma divindade relacionada ao kakaw entre mayas dos tempos pré-invasão).

Como se daria esse culto entre os mayas, então? Que tipo de cerimônias se realizava? Não sabemos. O que temos dos mayas, atualmente, é muito pouco. Para além das evidências arqueológicas de um modo geral, o que temos especificamente são várias menções, em textos hieroglíficos, ao cacau, e vasos que eram usados (pra tomar cacau) pelas elites. Acontece que a escrita era elitizada entre os mayas, e não de uso geral e comum. Por sua natureza logossilábica, e o tipo de discurso construído pelas elites mayas, não há textos tão extensos (como num livro de 600 páginas escrito em alfabeto latino, por exemplo), e há ainda o contexto cultural da produção desses textos - ou seja, textos escritos por poucos e para poucos, e quem lia conhecia o contexto e sabia como esse cacau era usado - logo, não era preciso detalhar muita coisa, por exemplo não era necessário relatar como os governantes consumiam cacau, e nem eventuais ritos associados a esse consumo. Logo, por mais que saibamos que o cacau era importante, e as menções a ele (à bebida) sejam consideráveis, não temos nada que nos permita afirmar muita coisa em termos de formatos ou rituais ou cerimônias especialmente voltados ao cacau (ainda que, na costa sul, eles tenham sido provavelmente mais abundantes). Em resumo, os mayas não deixaram nenhuma receita de bolo escrita, com um passo-a-passo de seus rituais, ou seja, os resquícios arqueológicos permitem falar sobre a importância do cacau, mas não servem muito para detalhar as práticas culturais e rituais, imaterialmente falando.


Figura 3. Exemplo de vasos usados para tomar kakaw entre os mayas clássicos.
Fontes: Museus Princeton e Met.

Em outros termos, as cerimônias mayas com cacau, conforme tem sido promovidas, são uma criação e uma invenção modernas. Não há lastro arqueológico ou antropológico que nos permita vincular estas cerimônias a tradições antigas, se tratando de rituais com formatos próprios, originais e recentemente forjados. Ao que tudo indica, esta é uma tradição criada já no prório século 21. Dito de outra forma: os mayas antigos não ritualizavam ou não faziam cerimônias com cacau nos moldes e formatos de cerimônia maya de/com cacau que são difundidos contemporaneamente, numa escalada da “moda do cacau” (fiquei sabendo outro dia que até a atual novela das 9 da grobo ajuda nessa moda, e não acredito muito em acasos). “O agro pode ser pop, mas também respeitar a natureza ‘com cerimônias, com tudo’, neguim” pensa alto o loko).

Ah, sobre o Keith (sobre quem não sou especialista): suas alunas são enfáticas em dizer, e eu acredito mesmo (pelas evidências escassas na internet), que Keith não ficava falando literalmente em IxKakaw nas suas cerimônias, nem promovendo cerimônias mayas propriamente ditas. Por outro lado, observando um vídeo, de uma entrevista com o próprio Keith (veja aqui, fica subentendido, nas entrelinhas, que ele está falando de IxKakaw, o que não torna de todo absurdo a crítica inicial no vídeo, como gostariam as “críticas das críticas” (que reagiram ao vídeo original que desencadeou a polêmica) neste caso. Ao contrário, se num primeiro momento me pareceu sem embasamento as afirmações sobre Keith, depois consegui entender como a pessoa chegou àquelas conclusões polêmicas, em algum ponto (de IxKakaw) imprecisas, mas não completamente “tiradas do nada”. No vídeo, Keith fala sobre viver na Guatemala como uma missão espécie de missão ou destino, e como algo que tem a ver com a deusa do cacau. Oras, se a Guatemala é uma terra maya (e mesmo “meca do cacau” para algumas), seria estranho supor que essa deusa do cacau fosse outra coisa que não maya, que não IxKakaw: Keith foi um obcecado em encontrar rituais mayas com cacau, mas não encontrou (algo que ele mesmo relatou).

Keith, a despeito de sua origem estadunidense e de ter sido um homem branco, é tratado como “xamã do cacau”, literalmente como o pioneiro, a pessoa que inaugurou e deu forma a esse tipo de cerimônias com cacau, mesmo não sendo mayas. Não é surpresa, então, que tenha colaborado e trabalhado com mayas que, depois, passaram a oferecer também suas próprias cerimônias de cacau, desta vez dentro de uma perspectiva maya ou incorporando elementos mayas, inclusive trazendo IxKakaw mais abertamente (veja umas dessasa cerâmicas da “deusa do cacau” abaixo) e, diria eu, inaugurando um culto moderno à deusa.


Figura 4. Foto de uma “cerimônia maya de cacau”, com a imagem da “deusa do cacau” ao centro e destacada, no que parece uma réplica.
Fonte: Instagram.

Após algumas conversas com pessoas mais inseridas do que eu no campo do cacau, reconheço que há pessoas que sentem “verdade” nas cerimônias mayas de cacau, e eu não questiono isso (e, como dito antes, nem quero desmerecê-los neste sentido), mas algumas delas também têm suas questões, incômodos ou críticas (especialmente no que se refere ao aspecto da comercialização e iniciação de estrangeiros numa “tradição maya do cacau”). Considerando que é difícil vincular literalmente Keith a IxKakaw, ou dizer que suas cerimônias eram mayas ou se apropriavam dos mayas, a impressão que eu tenho, hoje, é a de que Keith foi quem iniciou essas cerimônias de cacau contemporaneamente, mas foi seguido por alguns mayas, que criaram seu próprio formato, incorporando elementos das culturas mayas, com destaque especial para os calendários (e vejam só, quase não falei de calendários dessa vez). Como dito, Keith era um obcecado em encontrar um ritual maya de cacau, e não encontrou; como Keith criou seu próprio formato de cerimônia, e não se tem notícia de que tenha dito que encontrou o que buscava (cerimônias mayas que já aconteciam antes dele) entre esses mayas que promovem o cacau atualmente e com quem ele tinha contato, considerar isto torna minhas impressões bastante plausíveis, para dizer o mínimo.

Antes tarde do que nunca, vale lembrar (como comentei no instagram e uma das entusiastas do Keith confirmou em resposta) que essas cerimônias mayas do cacau são uma invenção recente, e que todos os “sacerdotes” mayas com quem tenho conversado concordam (mesmo discordando entre si sobre outros temas) que estas cerimônias são criação moderna e, para eles, não são mayas. Este é um movimento bastante minoritário entre os mayas, e sabidamente concentrado nas cidades mais turísticas da Guatemala - atendendo a demandas de mercado de turismo gringo e new age. Independente de como tratemos (ou destratemos) a figura do Keith, parece-me também difícil desvinculá-lo completamente da invenção dessas cerimônias mayas, sendo ele o pioneiro “xamã do cacau”, que possivelmente inspirou e colaborou bastante junto a esses mayas em vários níveis (assim como, aparentemente, boa parte de suas alunas, mesmo algumas das brasileiras). Importante destacar que, no instagram, uma daelas também buscou separar Keith do casal maya por mim criticado, e neste caso a mercantilização aconteceria mais pelo lado desses mayas. Ainda sobre o casal, é interessante destacar como algumas mulheres concordam ou têm a mesma impressão de que o tata (o homem) se beneficiou/beneficia muito mais disso tudo, e de que a nana (a mulher) acaba ocupando um papel secundário e auxiliar, algo que ficou evidente para elas durante a visita ao Brasil e as incomodou, inclusive.

Sobre a atual “moda do cacau” num sentido cerimonial e no Brasil, a notícia que tenho (inclusive confirmada por pessoas amigas que já pagaram por isso), é que algumas das alunas ou seguidoras de Keith cobram bastante caro em formações do cacau (como 3 mil reais), para que novas mulheres sejam também facilitadoras e condutoras dessas cerimônias com cacau. Talvez por isso estejam dando mais atenção a Keith, também. Isto se assemelha muito a um nicho de mercado espiritualista new age e elitizado, um verdadeiro comércio de “capital cultural e espiritual do cacau” que se encontra hipervalorizado e voltado para a classe média e média-alta, que geralmente busca experiências espirituais das mais variadas (e converter capital econômico em capital cultural e espiritual, poderia dizer o “sociólogo de combate” Pierre Bourdieu). Eu fico me perguntando se o apelo a mayas, mesoamericanos e indígenas não são parte fundamental disto, no sentido de acrescentar a este “capital cultural” - e mesmo cerimonial? - oferecido como produto (portanto “justificando” o valor de 3 mil reais). Digo isso, também, pois é notório que as simpatizantes de Wilson, mesmo não se reivindicando mayas ou dizendo que fazem cerimônias mayas, têm nos mayas, na Mesoamérica e nas suas relações indígenas com o cacau uma referência muito forte, que parece sim incorporada e arraigada às suas cerimônias (mesmo que a nível sutil, muitas vezes), mas que podem ganhar mais destaque e forma nas cerimônias também, e eventualmente tomar forma de culto brasileiro a IxKakaw (as redes sociais estão cheias de evidências neste sentido). Assim, aparentemente brasileiras que são entusiastas do cacau mas não tiveram contato com os mayas se tornam também grandes entusiastas (seguidoras?) de IxKakaw. Isso me faz lembrar um pouco o próprio sincronário, já que há seguidores desta coisa que acreditam que conhecem bem os mayas e seus calendários, ou mesmo que têm contatos diretos/espirituais com os mayas e não sei mais o quê, sem nunca ter saído do seu apartamento no Leblon.

Como antropólogo, cumpre observar e registrar também dados coletados previamente (entre aquele meu primeiro texto sobre cacau e este segundo). Entre esses dados, destaco que no fim do ano passado houve uma cerimônia chamada “Cacao Nahual”, uma jornada dançante de conexão com “a magia dos naguais”, no estado de São Paulo. Nahual é a grafia colonial para nawal, que também é uma palavra usada atualmente pra se referir aos dias do calendário ritual maya, e justo neste sentido foi usada. À época isto me causou preocupação, pois estava realmente sendo promovido com um discurso que dava a entender que tratava-se de uma cerimônia… Maya! Falava-se em cosmovisão maya na descrição do instagram e tudo; peguei e mandei pra uma amiga, crítica e um pouco mais conhecedora da moda do cacau: “pronto, oficialmente já tem mulher brasileira fazendo cerimônia maya de cacau no Brasil” - e ainda mantenho a impressão de que, de uma maneira ou outra, disto se tratou (mas talvez seja só uma impressão). O post no instagram foi apagado, mas há meu relato da época (destacando que a descrição falava, literalmente, em “cosmovisão maya”, além de usar glifos do calendáro maya em sua arte), e também há uma evidência (que ainda está online) da realização desta cerimônia específica. Neste caso, ficou evidente que uma das pessoas envolvidas no campo do cacau promoveu um evento “maya” - e isto foi agora, no fim de novembro passado (2023). Diante do acontecimento da cerimônia “Cacao Nahual”, que implica no uso da palavra e no recurso discursivo direto aos mayas, seus calendários e tudo isso, retomo o argumento da live, indagando: será que é assim que funciona? “Chamem como quiser”? Me pergunto se não terá sido por isso (pelo nome e pelo discurso “maya”) que o post foi apagado no instagram.

Para finalizar este texto, por agora (e ciente de que faltou dizer muita coisa, especialmente do lado maya antigo sobre o cacau), compartilho minhas conclusões preliminares:

1. IxKakaw existe para os mayas, documentalmente.
2. IxKakaw pode ser chamada de deusa.
3. O culto a divindades do cacau não era necessariamente menor, mas tinha mais força em locais e momentos específicos (assim como outros deuses, mesmo os mais conhecidos).
4. As “cerimônias mayas de cacau” são criação moderna, uma nova tradição, que seria obra de indígenas mas ainda assim foi particularmente influenciada e inspirada pela invenção de Keith Wilson.
5. Tais cerimônias não são conhecidas e nem reconhecidas ou respaldadas por quase todos os mayas, sendo propagadas por mayas que (também na visão de muito sacerdotes mayas) se alinham a práticas new age.
6. Logo, estas cerimônias, via de regra, atendem a uma demanda de mercado internacional e new age.
7. Diferente de um serviço local e comunitário e baseado em tradições mayas que foram mantidas, estas cerimônias constituem uma invenção recente (já do século 21) e que possivelmente já nasceu também como uma atividade econômica de tatas e nanas (como são chamados, respectivamente, “sacerdotes” mayas homens e mulheres) que buscam a internacionalização de suas marcas e suas práticas, o que inclui a “iniciação” (mesmo que online) de estrangeiros de qualquer nacionalidade para que conduzam cerimônias “mayas” de cacau.

[NOTA 0] para os mayas, “kakaw”.

[NOTA 1] meu conceito predileto de “new age”, há bastante tempo, tem sido o de Lisa Aldred: “parte de um contexto mais amplo da cultura consumista. Vários teóricos sociais propuseram que, crescentemente, estilos de vida, identidade, significados culturais e até espirituais tornaram-se commodities para compra”. Me pergunto se “significados culturais e espirituais” mayas não se tornaram também “commodities para compra” no campo do cacau, ou algo que dão mais valor às cerimônias de cacau enquanto produtos. ALDRED, Lisa. Plastic Shamans and Astroturf Sun Dances: new age Commercialization of Native American Spirituality. American Indian Quarterly, Lincoln: University of Nebraska Press, v. 24, n. 3, p. 329-352, 2000.

[NOTA 2] Este texto passa longe de aprofundar a respeito desse senhor. Também por isso, não aprofundo em certas referências sobre ele, mas há biografias e outros dados disponíveis online. Neste momento, basta dizer que ele chegou à Guatemala em 2003, viveu por lá e participou ativamente (ou foi o grande pioneiro) da (na) fundação da “cena do cacau” na própria Guatemala, e internacionalmente.

[NOTA 3] Note-se que o documento fala, literalmente que a cabeça de Jun Junajpu é a pendurada na árvore e o resto do seu corpo enterrado com Wuqub’ Junajpu, mas depois fala-se no plural e como se ela representasse também Wuqub’ Junajpu, e não só Jun Junajpu.

[NOTA 4] Ainda que seja mais comum encontrar referências e traduções que tratam este trecho como referência a haver um único pé de milho no milharal ou coisa do tipo, Sam Colop vai na contramão desta interpretação e sugere que seria “um” punhado de pés de milho (4 ou 5).

[NOTA 5] Minha principal referência, neste texto, é justamente a tradução do Popol Wuj de Sam Colop.

[NOTA 6] Mayas “clássicos” são os mayas antigos, que viveram (a grosso modo) entre os anos 250 e 900 EC (Era Comum). É considerado o “auge” maya (por extensão, da Mesoamérica), em que a escrita hieroglífica se propagou, grandes cidades e templos foram construídos, etc, etc, etc. Vale lembrar que os mayas não “sumiram” após o período clássico, apenas houve uma ruptura gradual, local e sistemática com o sistema de governo que, entre outras coisas, superendeusava os governantes clássicos (que eram governantes locais ou regionais, já que os mayas nunca constituíram um Império ou um poder realmente unificado).